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França: Desinformação ameaça iniciativa pela igualdade de gênero nas escolas

Categorias: Europa Ocidental, França, Educação, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Primeira Mão, Protesto

[Todos links levam para páginas em francês, exceto quando indicado outro idioma]

Manif pour tous [1]

Uma iniciativa a favor da igualdade entre meninas e meninos na escola, o ABCD da Igualdade [2] está causando grande polêmica na França. O projeto do Ministério da Educação pretendia passar por cima dos estereótipos, usando novos métodos e avaliando a reação dos alunos ao programa em escolas piloto durante quatro meses.

Os adversários da iniciativa entenderam que se trata de um ataque aos valores tradicionais da família e iniciaram uma grande campanha para lembrar as diferenças naturais entre os gêneros, além de afirmarem que não é papel do estado ensinar assuntos privados na escola. Manifestações chamadas de dias de raiva [3] foram organizadas em várias cidades, assim como foram planejados boicotes as aulas em dias específicos, através da internet.

A desinformação gerada durante a campanha tomou tamanha proporção que o Ministério da Educação organizou encontros com os pais de alunos para restabelecer a verdade dos fatos. Em uma matéria do dia 28 de janeiro, o jornal “Le Monde” apontou cinco mentiras sobre a teoria do gênero [4]. Em seguida, chamou a atenção para uma falsa citação [5] usada pela extrema direita para desaprovar a ação do governo, no que diz respeito aos valores familiares. De acordo com os opositores, a senadora pelo partido socialista francês Laurence Rossignol teria dito meses atrás que as “crianças não pertencem aos pais, e sim ao estado”. Só que a segunda parte desta frase foi inteiramente inventada, conforme mostra este vídeo encontrado no site Arrêt sur images [6] com a fala da senadora:

Foram atribuídas palavras a Laurence Rossignol que ela nunca quis dizer e, sobretudo, que nunca disse, como ela explicou ao Dailymotion [7]:

Outra afirmação falsa bastante difundida é que o ensino de ‘teoria de gênero’ passaria a ser obrigatório nas escolas. Esses e outros boatos fizeram com que pais ausentassem os seus filhos das escolas para protegê-los, nos chamados “dias de ausência programada da escola”. O Le Monde também se pronunciou:

Deuxième intox: l'enseignement de la théorie du genre devient obligatoire. Ce climat d'hystérie autour des questions d'égalité hommes-femmes ou de lutte contre l'homophobie débouche sur des phénomènes assez dramatiques, comme cette vague de SMS appelant les parents à retirer leurs enfants des écoles un jour donné pour dénoncer cet enseignement obligatoire. Derrière ces rumeurs, on trouve l'extrême droite. Plus précisément, des militants proches de l'extrême droite qui ont monté un jour de retrait de l'école assurant que l'Etat, sous couvert de lutter contre l'homophobie, introduit à notre insu la théorie du genre à l'école: homosexualité, bisexualité et transexualité entrent dans tous les programmes scolaires.

Segunda mentira: O ensino da teoria do gênero se torna obrigatório. Este clima de histeria coletiva rondando as questões de igualdade homens-mulheres ou de luta contra a homofobia sempre dá origem à fenômenos dramáticos, tal como essa onda de SMS chamando os pais para retirar os filhos das escolas em determinados dias, para denunciar este ensino obrigatório do gênero. Por trás desses boatos está a extrema direita. Ou com mais exatidão, ativistas próximos à extrema direita que inventaram um dia de ausência da escola, convencidos de que o Estado, fingindo lutar contra a homofobia, queria introduzir a teoria do gênero na escola, sem dizer nada: homossexualidade, bissexualidade e transexualidade vão entrar de gaiato em todos os programas escolares.

É bom comparar essas afirmações com o texto do site governamental ABCD da Igualdade [2], que motivou o debate:

Transmettre des valeurs d’égalité et de respect entre les filles et les garçons, les femmes et les hommes, est une des missions essentielles de l’école. Pourtant, des inégalités de réussite scolaire, d’orientation et de carrière professionnelle demeurent entre les deux sexes. L’ambition du programme ABCD de l’égalité est de lutter contre celles-ci en agissant sur les représentations des élèves et les pratiques des acteurs de l’éducation.

Transmitir os valores de igualdade e de respeito entre meninas e meninos, mulheres e homens, é uma das missões essenciais da escola. Entretanto, desigualdades no sucesso escolar, na orientação e na carreira profissional ainda permanecem entre os dois sexos. O objetivo do programa ABCD da igualdade é lutar contra isto interagindo sobre as representações dos alunos e as práticas dos atores da educação.

Sites, páginas das redes sociais e até mesmo mensagens de texto de telefones celulares (SMS) estão sendo utilizadas para espalhar esses boatos:

Como Facebook e os SMS fazem para minorar os boatos absurdos sobre a “teoria do gênero” >> http://t.co/CXM9ngXO9C [8] pic.twitter.com/aCEStUDjGe [9] — Le Plus (@leplus_obs) 30 Janvier 2014 [10]

Ainda que o blogue Teoria do gênero, vírus ideológico [11] não seja atualizado desde setembro do ano passado, e que a página no facebook A verdade sobre o pai da teoria dos estudos de gênero [12] tenha uma audiência reduzida (1587 “likes”), em poucos dias o ex-ativista de esquerda anti-racista, que mudou para extrema-direita, participando da oposição ao projeto ABCD da Igualdade Farida Belghoul [13] conseguiu organizar reuniões para planejar os dias de ausência em algumas cidades da França. Entre 24 e 27 de janeiro, as reuniões ocorreram em Lyon, Rennes e Strasbourg, na Ile-de-France, no departamento do Oise, em Vernon, Metz, Nancy e Nantes nas quais os pais de alunos foram instigados à retirar os filhos das escolas como forma de manifestar o seu desacordo com o suposto ensino da teoria do gênero.

O site em construção JRE2014 [14] reúne conteúdo contrário à teoria do gênero e ao debate de questões de gênero nas escolas. Nas redes sociais, conteúdo semelhante pode ser encontrado e também uma mobilização para convencer os pais a aderir aos dias de ausência da escola. Em poucas semanas, a conta do facebook JRE2014 [15] juntou mais de 18.000 leitores. Aberta no dia 19 de dezembro 2013, ela totaliza hoje 20.000 “likes”. Nesta mesma conta, é possível ler os comentários dos pais que receberam SMS pedindo para não levar os filhos à escola.

logo_abcdegalite

Logo de l'ABCD de l'égalité

Céline Violette a respeito desta página [16]:

Y-a-t-il une PETITION OFFICIELLE pour l'interdiction de l'INTRUSION de la théorie du genre à l'éducation nationale? Afin de permettre de compter tout le monde, père ET mère, et tous les citoyens qui n'ont pas d'enfant et qui sont conscients de ce qui se passe.

Será que existe alguma petição oficial para evitar a intromissão da teoria de gênero na escola? Para que seja possível determinar quantas pessoas são mães e pais e todos os cidadãos que não possuem filhos, mas que estão cientes do que está acontecendo.

Quanto mais irracional é o boato mais as pessoas acreditam nele. Numa matéria publicada no Le Monde no dia 1 de fevereiro 2014 com o título Dia de ódio, escuridão para todos [17], o jornalista Jean Birnbaum revelou a sua preocupação com a campanha em geral:

Pour le moment, ce compagnonnage avec un sombre nihilisme condamne les collectifs colériques à l'impuissance politique. Mais c'est aussi lui qui les rend si difficiles à combattre pour les partis traditionnels, de droite comme de gauche. […] Il y a ici un cauchemar pour quiconque demeure attaché à une éthique de la rationalité, qu'elle soit religieuse ou politique. […] Par-delà les slogans politiques, la galaxie “de la colère” représente donc un défi lancé aux pratiques d'enseignement et aux institutions démocratiques. Si ce défi n'était pas relevé, alors le “jour de colère” pourrait bien devenir la nuit pour tous.

No momento, esta campanha com uma sombra de niilismo condena os coletivos raivosos à impotência política. Mas, também é isso que os torna tão difíceis de serem enfrentados por partidos tradicionais de direita e de esquerda. Temos aí um pesadelo para qualquer um que se apega à uma ética da racionalidade, seja ela religiosa ou política. […] Muito além dos slogans políticos, a galáxia “da raiva” representa um desafio às práticas de ensino e às instituições democráticas. Se este desafio não for enfrentado, então, “o dia de raiva” bem que pode vir a se tornar uma noite para todos.

Uma comentário mais ameno pode ser visto em l'appel des enfants [18] (O chamado das crianças), que foi partilhado pelo site de humor Le Gorafi.fr:

Les enfants demandent donc que cessent ces rumeurs et fausses informations, qu’on les laisse retourner à l’école. Quant à la théorie du genre, ils estiment qu’elle n’a pas lieu d’être. «Des fois, les filles elles sont fortes comme les garçons, et même que hier Joachim il a perdu toutes ses billes contre Sofia de la classe de madame Dumas, on a bien ri».

As crianças pedem que cessem estes rumores e falsas informações para que eles possam voltar à escola. No que diz respeito à teoria do gênero, elas acham que não tem fundamento: «Às vezes, as meninas são tão fortes quanto os meninos, até mesmo ontem, Joachim perdeu todas as bolas de gude dele contra a Sofia da classe da Tia Dumas, a gente riu que só».

No dia 30 de janeiro 2014, um debate no canal iTélé tentou definir os desafios políticos:

http://www.youtube.com/watch?v=X8VYO4VEhZo [19]

Outras iniciativas estão tentando frear a boataria da campanha. Percebendo a facilidade com que os rumores criaram raízes em alguns bairros onde residem principalmente minorias [20], Kaissa Titous questionou sua antiga colega e agora líder da campanha de oposição Farida Belghoul, que é de ascendência argelina, para impedir o avanço do seu movimento de boicote à escola [21]:

Tu voudrais qu’aujourd’hui nous faisions des alliances avec des forces politiques qui n’ont pas arrêté de prospérer sur la haine de nos quartiers et de ses habitants, qui nous agitent comme repoussoirs à chaque élection, qui nous accusent d’être des envahisseurs, qui arrachent les pains au chocolat et le pain de la bouche des Français de souche

Hoje você quer que nós façamos alianças com forças políticas que fizeram crescer o ódio contra o nosso povo [minorias] e os nossos bairros. Eles estão apontando para nós como os culpados pelas dores da França a cada eleição, chamando-nos invasores, você tem tirar croissants de chocolate e pão da boca dos franceses “de verdade”.

[NdT: A polêmica do “pãozinho de chocolate” agitou o pais em outubro de 2012. Um dos candidatos à presidência da UMP, o partido do presidente da época, Nicolas Sarkozy, disse entender o sofrimento dos pais dos meninos que tinham o “seu pãozinho de chocolate arrancado das mãos por meninos (muçulmanos) gritando ‘nos dias de ramadão ninguém come'”. Neste caso, a comparação é feita com os franceses que não seriam “de verdade”, em outras palavras “muçulmanos”.]

Este post foi escrito com a colaboração de Jean-Pierre Wetzels [22], Elise Lecamp [23] e Suzanne Lehn [24].