Fiquei surpreendida quando vi que havia restos de fita magnética no cabelo e na roupa das pessoas que saíam da sessão de encerramento do Future Places, um festival de media digitais no Porto, reinventado este ano como “laboratório de media para a cidadania”. Desde 2008, o evento anual é acolhido pela Universidade do Porto em parceria com a Universidade do Texas em Austin no âmbito do programa Collaboratory for Emerging Technologies (Co-Laboratório para as Tecnologias Emergentes).
Estudantes, artistas, músicos, cientistas e tecnólogos juntaram-se, de 28 de Outubro a 2 de Novembro, à volta de um programa intenso que incluía oficinas, debates e atuações, bem como um simpósio do doutoramento em media digitais.
A personagem sombria envolvida em fita magnética que chamou a minha atenção entre os participantes era o Antifluffy, cuja bio no website do Future Places simplesmente dizia “a nossa gloriosa mascote”. Tive a oportunidade de “conhecer” este personagem fictício (criado pelo diretor artístico e co-curador Heitor Alvelos) no fim do espetáculo, e ele estava exausto. O Antifluffy tinha embrulhado a audiência com fita VHS durante um exercício sobre o imediatismo na era pós-digital.
O exercício pretendia explorar a ideia de que uma parte do nosso passado está gravada em formatos analógicos. A metáfora da fita magnética serve também como convite à reflexão sobre o magnetismo que existe entre os seres humanos. Poderá o facto de se embrulhar estranhos com fita magnética servir como rendição visível das relações humanas? Numa era pós-digital, Antifluffy acredita que sim.
Com base no conceito de imediatismo cunhado pelo filósofo insurrecionista Hakim Bey num manifesto de 1994, Antifluffy convida-nos a participar em “experiências não mediadas” (como escrever uma carta à mão) porque é importante tanto a nível psicológico como humano estabelecermos ligações, depararmo-nos com estranhos e trilharmos novos caminhos.
“Aquela ideia de que futuro é digital, está a dissipar-se de certa forma. Estamos num pós-digital na medida em que já não há sequer uma separação possível”, diz Antifluffy. “Estes aparelhos entranharam-se de tal forma na nossa vivência, no nosso ‘modus operandi’ que já não faz sentido ponderá-los como um espaço específico e situá-lo algures. Ja criaram raízes no nosso quotidiano”.
Entrevista com Antifluffy
Global Voices (GV): Quem és tu, Antifluffy?
Antifluffy (AF): Sou a mascote de um laboratório de media no Porto. Sou um ícone, porque possuo uma imagem e um nome que ficam no ouvido. E também sou uma ideia sobre como o mundo pode ser um lugar melhor.
GV: O mundo real ou o mundo digital?
Como Antifluffy eu não faço distinções, tudo está ligado. A ideia que pretendo transmitir é que não existe nada de fundamentalmente diferente nos novos media se não consideramos as suas repercussões a nível existencial. Há um tipo de determinismo subjacente aos media – e até mesmo ao que algumas pessoas chamam pós-media – que é uma espécie de caminho que nos levará ao futuro, sem levarmos em conta o que isso nos está a fazer e quais as opções que de facto temos.
GV: Optas por estar nas redes sociais?
Sim, claro! Posso dizer que tenho várias contas no Facebook e Twitter, já que sendo uma ideia, sou essencialmente algo que está na mente de toda a gente. Antifluffy é uma forma de descrever a qualidade que todos os humanos têm: a obliquidade. A obliquidade é a capacidade que todos têm, intrinsecamente, de pensar fora-da-caixa, de inovar, de não ir apenas ao sabor da maré, de não se deixar ser seduzido pelo espelho dos ‘gadgets’ do dia-a-dia, a todo o instante.
Na essência, o Antifluffy é a crença de que as pessoas podem fazer melhor negócio daquilo que os media têm para lhes oferecer. Uma coisa que me inquieta é quando me apercebo que todos nós temos ferramentas altamente poderosas à nossa disposição agora mesmo, mas no entanto em vez de estas estarem a agir em nosso favor, na verdade estão contra nós, a tornar-nos mais ansiosos, mais deterministas, mais alienados.
O que é feito do carácter conciliador dos novos media? Eu ainda não o descobri e acho que temos o dever de encontrá-lo e nutri-lo. É óbvio que estou a generalizar, há pessoas que estão a fazer coisas que são fundamentalmente certas, mas são exceções à regra…
GV: Quem é o “nós” da performance “We are the fluff” (Nós somos o fluff) que aconteceu agora mesmo?
Quando eu digo “nós” quero mesmo dizer “Nós, seres humanos”, “Nós, criaturas que estamos vivas neste momento”. Eu sou um convite para as pessoas desenvolverem a obliquidade que têm dentro de si. Para repensarem os parâmetros da sua ligação com a cultura contemporânea…
O Antifluffy foi de certa forma inspirado num anúncio de televisão de uma empresa de telemóveis, que do meu ponto de vista representa um síndroma. O anúncio mostra uma história resumida do século XX, que inclui, entre outras coisas, imagens históricas de soldados num campo de batalha. O facto de uma empresa de telemóveis usar imagens de seres humanos que muito provavelmente não voltaram para casa, e depois dizer que a solução é mudares o teu contrato para um plano melhor, 4 cêntimos por minuto. Qual é a intenção? Em termos de herança histórica, é isto que os nossos antepassados merecem?
Fluff é esse tipo de treta que diz que a história pode e deve ser revisitada como um mecanismo… Para quê? Já basta de palha!
GV: Hoje vi uma multidão na rua liderada por uma orquestra. O que parecia inicialmente uma verdadeira atuação musical era de facto um evento patrocinado (e filmado) com o logotipo de uma empresa de telemóveis por todo o lado…
Não sou contra as empresas que facilitam o acesso à cultura. Penso que é completamente aceitável, contudo o que me parece agora é que tudo se tornou uma espécie de campo de minas. Costumava ser – ou pelo menos parecia – mais fácil ler o panorama cultural e social, e agora tudo isso tem-se tornado muito questionável. Com este tipo de experiências. Estás a ver, um pequeno detalhe pode repentinamente levar toda a experiência para um território completamente diferente – neste caso do cultural para o comercial. Não quero dizer que as ligações não podem ser estabelecidas, mas qual será o preço a pagar?
GV: Seria mais fácil atrair pessoas para as ruas do Porto se as manifestações contra as políticas de austeridade fossem patrocinadas por uma marca?
O que aconteceu no dia 15 de Setembro de 2012, foi um momento chave para a percepção do que está a acontecer socialmente em Portugal. Nesse dia tivemos o que as pessoas chamariam a maior manifestação desde a revolução de 1974. A Avenida dos Aliados [a principal avenida do centro da cidade, onde se encontra a Câmara Municipal], estava cheia de centenas de milhares de pessoas que protestavam contra o grave aumento dos impostos. E o mais estranho é que uma empresa de telemóveis estava a organizar uma festa ao ar livre nessa mesma noite.
Habitualmente, costumo mostrar 2 slides nas minhas apresentações: um que mostra a Avenida dos Aliados repleta de pessoas às 15h, e outro com a mesma multidão na Praça Filipa de Lencastre à 1 da manhã a beber cerveja e a ouvir alguns DJ's. Então, o que estás a descrever foi realmente o que já aconteceu. Eu tenho a certeza que houve uma ligação entre estes dois eventos que foi planeada.
Porém, a minha preocupação é exatamente esta… Qual é a palavra? Não é polarização… mas esquizofrenia. É esta espécie de esquizofrenia em que ora estás em modo de festa ou em modo de protesto, e eu acho que isto não é nada saudável. É de facto altamente prejudicial para a nossa integridade como indivíduos.
Preocupa-me que não veja muitas pessoas proporem novas geometrias sociais. O único momento em que as pessoas saem à rua é para dizer NÃO. Mas o que eu nunca vejo é o mesmo enorme grupo de pessoas a anunciar uma alternativa em conjunto como um todo.
GV: Achas que os meios digitais podem ajudar a reunir pessoas para conseguir alternativas?
…Eu acho que a primeira condição para sairmos da péssima situação em que nos encontramos é reorganizarmos a forma de nos ligarmos uns aos outros… Como podemos ser saudáveis como indivíduos e como cidadãos se continuamos a ser bombardeados por estas mensagens e imagens de uma catástrofe e ao mesmo tempo somos capazes de dizer “Está tudo ótimo e estamos a divertir-nos”? Tem que haver um meio termo, uma maneira de tornar estes dois momentos esquizofrénicos harmoniosos. Somos reféns desta polarização e estamos a ser bombardeados com a ideia de que tudo está mal e depois está tudo bem logo em seguida. Depois do jornalista apresentar as notícias trágicas – vamos fazer uma pausa, e é tudo sobre futilidades, e amor e iPads, e não é sadio ouvir estas mensagens.
GV: Estás a lutar contra estas mensagens de alienação?
Apesar do “anti” no meu nome, eu prefiro pensar que o Antifluffy é acima de tudo um convite ao otimismo. Tu sabes que existirão coisas que nunca vão estar sob o nosso controle, e uma delas é o afeto. Sejamos generosos, valorizemo-nos uns aos outros, não tenhamos medo de dizê-lo. Trata-se de otimismo, de conexão, e também de não insultar a inteligência das pessoas. O Antifluffy é uma forma de dizer que algumas coisas levam o seu tempo a serem desvendadas, compreendidas. São complexas. Mantenhamos a calma, está tudo bem, não é preciso compreender tudo imediatamente – por oposição à vertigem que está a acontecer nas redes sociais e nos velhos media.