Tragam as cassetes e sejam bem-vindos à era pós-digital

Antifluffy e Futureplaces Impromptu All-Star Orchestra no Maus Hábitos, Porto, 2 de Novembro de 2013. Foto de Luis Barbosa para Future Places no Facebook (usada com permissão).

Antifluffy e Futureplaces Impromptu All-Star Orchestra no Maus Hábitos, Porto, 2 de Novembro de 2013. Foto de Luis Barbosa para Future Places no Facebook (usada com permissão).

Fiquei surpreendida quando vi que havia restos de fita magnética no cabelo e na roupa das pessoas que saíam da sessão de encerramento do Future Places, um festival de media digitais no Porto, reinventado este ano como “laboratório de media para a cidadania”.  Desde 2008, o evento anual é acolhido pela Universidade do Porto em parceria com a Universidade do Texas em Austin no âmbito do programa Collaboratory for Emerging Technologies (Co-Laboratório para as Tecnologias Emergentes).

Estudantes, artistas, músicos, cientistas e tecnólogos juntaram-se, de 28 de Outubro a 2 de Novembro, à volta de um programa intenso que incluía oficinas, debates e atuações, bem como um simpósio do doutoramento em media digitais.  

A personagem sombria envolvida em fita magnética que chamou a minha atenção entre os participantes era o Antifluffy, cuja bio no website do Future Places simplesmente dizia “a nossa gloriosa mascote”. Tive a oportunidade de “conhecer” este personagem fictício (criado pelo diretor artístico e co-curador Heitor Alvelos) no fim do espetáculo, e ele estava exausto. O Antifluffy tinha embrulhado a audiência com fita VHS durante um exercício sobre o imediatismo na era pós-digital.  

O exercício pretendia explorar a ideia de que uma parte do nosso passado está gravada em formatos analógicos. A metáfora da fita magnética serve também como convite à reflexão sobre o magnetismo que existe entre os seres humanos. Poderá o facto de se embrulhar estranhos com fita magnética servir como rendição visível das relações humanas? Numa era pós-digital, Antifluffy acredita que sim.  

Com base no conceito de imediatismo cunhado pelo filósofo insurrecionista Hakim Bey num manifesto de 1994, Antifluffy convida-nos a participar em “experiências não mediadas” (como escrever uma carta à mão) porque é importante tanto a nível psicológico como humano estabelecermos ligações, depararmo-nos com estranhos e trilharmos novos caminhos. 

“Aquela ideia de que futuro é digital, está a dissipar-se de certa forma. Estamos num pós-digital na medida em que já não há sequer uma separação possível”, diz Antifluffy.  “Estes aparelhos entranharam-se de tal forma na nossa vivência, no nosso ‘modus operandi’ que já não faz sentido ponderá-los como um espaço específico e situá-lo algures. Ja criaram raízes no nosso quotidiano”.

Entrevista com Antifluffy

Global Voices (GV): Quem és tu, Antifluffy?

Antifluffy contempla um mar de Inverno, paisagem fria desolada, metáfora da contemporaneidade, da utopia que se esboroou. Contempla inclusive o seu próprio destroço, em primeiro plano. Mas mar é também caldeirão de fertilidade, infinitamente renovável. E assim a desolação contém promessa de lucidez.

“Antifluffy contempla um mar de Inverno, paisagem fria desolada, metáfora da contemporaneidade, da utopia que se esboroou. Contempla inclusive o seu próprio destroço, em primeiro plano. Mas mar é também caldeirão de fertilidade, infinitamente renovável. E assim a desolação contém promessa de lucidez.” Conceito: Heitor Alvelos. Poster para Future Places de Manufactura Independente.

Antifluffy (AF): Sou a mascote de um laboratório de media no Porto. Sou um ícone, porque possuo uma imagem e um nome que ficam no ouvido. E também sou uma ideia sobre como o mundo pode ser um lugar melhor. 

GV: O mundo real ou o mundo digital?

Como Antifluffy eu não faço distinções, tudo está ligado. A ideia que pretendo transmitir é que não existe nada de fundamentalmente diferente nos novos media se não consideramos as suas repercussões a nível existencial. Há um tipo de determinismo subjacente aos media – e até mesmo ao que algumas pessoas chamam pós-media – que é uma espécie de caminho que nos levará ao futuro, sem levarmos em conta o que isso nos está a fazer e quais as opções que de facto temos. 

GV: Optas por estar nas redes sociais?

Sim, claro! Posso dizer que tenho várias contas no Facebook e Twitter, já que sendo uma ideia, sou essencialmente algo que está na mente de toda a gente. Antifluffy é uma forma de descrever a qualidade que todos os humanos têm: a obliquidade. A obliquidade é a capacidade que todos têm, intrinsecamente, de pensar fora-da-caixa, de inovar, de não ir apenas ao sabor da maré, de não se deixar ser seduzido pelo espelho dos ‘gadgets’ do dia-a-dia, a todo o instante. 

Na essência, o Antifluffy é a crença de que as pessoas podem fazer melhor negócio daquilo que os media têm para lhes oferecer. Uma coisa que me inquieta é quando me apercebo que todos nós temos ferramentas altamente poderosas à nossa disposição agora mesmo, mas no entanto em vez de estas estarem a agir em nosso favor, na verdade estão contra nós, a tornar-nos mais ansiosos, mais deterministas, mais alienados.  

O que é feito do carácter conciliador dos novos media? Eu ainda não o descobri e acho que temos o dever de encontrá-lo e nutri-lo. É óbvio que estou a generalizar, há pessoas que estão a fazer coisas que são fundamentalmente certas, mas são exceções à regra…  

Participante do medialab "We are the fluff" embrulhada em fita magnética. Foto de Luís Barbosa para o Future Places (usada com permissão)

Participante do medialab “We are the fluff” embrulhada em fita magnética. Foto de Luís Barbosa para o Future Places (usada com permissão)

GV: Quem é o “nós” da performance “We are the fluff” (Nós somos o fluff) que aconteceu agora mesmo?

Quando eu digo “nós” quero mesmo dizer “Nós, seres humanos”, “Nós, criaturas que estamos vivas neste momento”. Eu sou um convite para as pessoas desenvolverem a obliquidade que têm dentro de si. Para repensarem os parâmetros da sua ligação com a cultura contemporânea…

O Antifluffy foi de certa forma inspirado num anúncio de televisão de uma empresa de telemóveis, que do meu ponto de vista representa um síndroma. O anúncio mostra uma história resumida do século XX, que inclui, entre outras coisas, imagens históricas de soldados num campo de batalha. O facto de uma empresa de telemóveis usar imagens de seres humanos que muito provavelmente não voltaram para casa, e depois dizer que a solução é mudares o teu contrato para um plano melhor, 4 cêntimos por minuto. Qual é a intenção? Em termos de herança histórica, é isto que os nossos antepassados merecem?  

Fluff é esse tipo de treta que diz que a história pode e deve ser revisitada como um mecanismo… Para quê? Já basta de palha!   

GV: Hoje vi uma multidão na rua liderada por uma orquestra. O que parecia inicialmente uma verdadeira atuação musical era de facto um evento patrocinado (e filmado) com o logotipo de uma empresa de telemóveis por todo o lado…   

Não sou contra as empresas que facilitam o acesso à cultura. Penso que é completamente aceitável, contudo o que me parece agora é que tudo se tornou uma espécie de campo de minas. Costumava ser – ou pelo menos parecia – mais fácil ler o panorama cultural e social, e agora tudo isso tem-se tornado muito questionável. Com este tipo de experiências. Estás a ver, um pequeno detalhe pode repentinamente levar toda a experiência para um território completamente diferente – neste caso do cultural para o comercial. Não quero dizer que as ligações não podem ser estabelecidas, mas qual será o preço a pagar? 

GV: Seria mais fácil atrair pessoas para as ruas do Porto se as manifestações contra as políticas de austeridade fossem patrocinadas por uma marca?  

O que aconteceu no dia 15 de Setembro de 2012, foi um momento chave para a percepção do que está a acontecer socialmente em Portugal. Nesse dia tivemos o que as pessoas chamariam a maior manifestação desde a revolução de 1974. A Avenida dos Aliados [a principal avenida do centro da cidade, onde se encontra a Câmara Municipal], estava cheia de centenas de milhares de pessoas que protestavam contra o grave aumento dos impostos. E o mais estranho é que uma empresa de telemóveis estava a organizar uma festa ao ar livre nessa mesma noite.    

Habitualmente, costumo mostrar 2 slides nas minhas apresentações: um que mostra a Avenida dos Aliados repleta de pessoas às 15h, e outro com a mesma multidão na Praça Filipa de Lencastre à 1 da manhã a beber cerveja e a ouvir alguns DJ's. Então, o que estás a descrever foi realmente o que já aconteceu. Eu tenho a certeza que houve uma ligação entre estes dois eventos que foi planeada. 

Porém, a minha preocupação é exatamente esta… Qual é a palavra? Não é polarização… mas esquizofrenia. É esta espécie de esquizofrenia em que ora estás em modo de festa ou em modo de protesto, e eu acho que isto não é nada saudável. É de facto altamente prejudicial para a nossa integridade como indivíduos. 

Preocupa-me que não veja muitas pessoas proporem novas geometrias sociais. O único momento em que as pessoas saem à rua é para dizer NÃO. Mas o que eu nunca vejo é o mesmo enorme grupo de pessoas a anunciar uma alternativa em conjunto como um todo.   

Tape remnants at Maus Hábitos. Photo by Luis Barbosa for Future Places.

Tape remnants at Maus Hábitos. Photo by Luis Barbosa for Future Places (used with permission).

GV: Achas que os meios digitais podem ajudar a reunir pessoas para conseguir alternativas?  

…Eu acho que a primeira condição para sairmos da péssima situação em que nos encontramos é reorganizarmos a forma de nos ligarmos uns aos outros… Como podemos ser saudáveis como indivíduos e como cidadãos se continuamos a ser bombardeados por estas mensagens e imagens de uma catástrofe e ao mesmo tempo somos capazes de dizer “Está tudo ótimo e estamos a divertir-nos”? Tem que haver um meio termo, uma maneira de tornar estes dois momentos esquizofrénicos harmoniosos. Somos reféns desta polarização e estamos a ser bombardeados com a ideia de que tudo está mal e depois está tudo bem logo em seguida. Depois do jornalista apresentar as notícias trágicas – vamos fazer uma pausa, e é tudo sobre futilidades, e amor e iPads, e não é sadio ouvir estas mensagens. 

GV: Estás a lutar contra estas mensagens de alienação?

Apesar do “anti” no meu nome, eu prefiro pensar que o Antifluffy é acima de tudo um convite ao otimismo. Tu sabes que existirão coisas que nunca vão estar sob o nosso controle, e uma delas é o afeto. Sejamos generosos, valorizemo-nos uns aos outros, não tenhamos medo de dizê-lo. Trata-se de otimismo, de conexão, e também de não insultar a inteligência das pessoas. O Antifluffy é uma forma de dizer que algumas coisas levam o seu tempo a serem desvendadas, compreendidas. São complexas. Mantenhamos a calma, está tudo bem, não é preciso compreender tudo imediatamente – por oposição à vertigem que está a acontecer nas redes sociais e nos velhos media.

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