- Global Voices em Português - https://pt.globalvoices.org -

“Pornô de revanche” leva a morte trágica de duas garotas no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Mídia Cidadã, Mulheres e Gênero, Tecnologia

Num curto espaço de tempo duas garotas cometeram suicídio após homens terem divulgado vídeos e fotos íntimas nas redes sociais. O tema do vazamento de material íntimo na rede ganhou destaque no noticiário brasileiro no mês passado com o caso #ForçaFran [1], em que uma jovem da cidade de Goiânia teve um vídeo compartilhado através do aplicativo WhatsApp, despertando o debate em torno do machismo e controle do corpo feminino pela sociedade. Porém desta vez as consequências foram ainda mais trágicas.

Mensagens deixadas por Júlia Rebeca no seu perfil de Twitter (@coejuju). [2]

Mensagens deixadas por Júlia Rebeca no seu perfil de Twitter (@coejuju).

Um dos casos ocorreu na cidade de Parnaíba, no Piauí, no dia 10 de novembro. A adolescente Júlia Rebeca gravou o vídeo que a envolvia a ela, um rapaz e outra  garota, e foi posteriormente divulgado através do Whatsapp, ferramenta cada vez mais utilizada  [3]para a divulgação de vídeos íntimos. O vídeo foi se espalhando até chegar a ser compartilhado na internet. A adolescente chegou a anunciar no Twitter o próprio suicídio que acabou por cometer [4] com o fio da prancha de alisar cabelo. Foi encontrada pela família morta em seu quarto.

A outra garota que participou do vídeo também chegou a tentar suicídio [5]por meio de envenenamento, porém foi socorrida a tempo e sobreviveu.

O outro caso semelhante ocorreu [6] apenas quatro dias depois, desta vez com a adolescente Giana Laura Fabi, da cidade de Veranópolis, interior do Rio Grande do Sul, que foi encontrada enforcada em sua casa pela família. A jovem mostrou os seios para um garoto numa conversa de Skype, e ele confirmou à polícia que deu um “printscreen” (comando para copiar a tela do computador) e divulgou a imagem entre amigos. Uma amiga de Giana recebeu a foto e a alertou sobre o ocorrido. A amiga da adolescente relatou à polícia que ela ficou transtornada com o que estava acontecendo.

Machismo que mata

Alguns textos refletindo sobre os episódios envolvendo o vazamento de materiais íntimos focaram no machismo [7] e falta de caráter de homens que divulgam estes materiais, muitas vezes como  forma de  vingança ou revanche, ou simplesmente como forma de ganhar status entre seus pares.

Slut Walk - Sao Paulo, 4 de junho de 2011. Num dos cartazes lê-se "Meu corpo, minhas regras". Foto: Andre M. Chang copyright Demotix. [8]

Slut Walk (Marcha das Vadias) – Sao Paulo, 4 de junho de 2011. Num dos cartazes lê-se “Meu corpo, minhas regras”. Foto: Andre M. Chang copyright Demotix.

A blogueira Camila Pavanelli ressalta [9] que a tragédia destes casos – tanto das meninas que cometeram suicídio, quanto de casos como da Fran [1], de mulheres que tiveram suas vidas devastadas – é provocada pelo machismo da sociedade:

O problema não é que ela transou. O problema não é que ela tirou foto enquanto transou. O problema não é que o ex-namorado é louco e/ou mau-caráter e ELA deveria ter arrumado homem melhor. Em suma, o problema não é que ela estava usando minissaia, como costumam dizer em caso de estupro.

O problema mesmo é o machismo.

Camila ainda reforça que as mulheres são julgadas como culpadas não importa qual seja sua atitude, relatando uma situação pela qual ela própria passou. Ela reflete:

O que as pessoas não entendem é que sempre se dá um jeito de botar a culpa na mulher. Se transou, é porque deu, então é puta; se não transou, é porque não quis dar, então é histérica. De qualquer forma, é culpada.

A blogueira Lady Rasta também problematiza [10] o tema, questionando as recomendações para que as meninas tomem mais cuidado com suas companhias e com o que fazem:

Em uma semana, continuamos a ler e ouvir a mesma cantilena de sempre: que como os homens não mudam e a sociedade “é assim mesmo”, nós temos que ensinar as meninas a não se deixar filmar; que como “os homens (vocês sabem, esses menininhos grandes inimputáveis que não sabem o que é certo é errado, tadinhos deles) dividem mulher em pra casar e pra zoar, nós temos que ensinar nossas filhas a se comportar” (não sei bem o que é se comportar – pra mim ainda é não roubar o lanche do amiguinho, mas enfim, sou moça antiga).

Tá errado, gente. Não é assim que as coisas vão mudar.

Esta perspectiva se evidencia na medida em que os homens envolvidos nos vazamento de materiais íntimos são vistos como prodigiosos e permanecem incólumes diante da situação, enquanto as mulheres envolvidas têm suas vidas devastadas e são condenadas e responsabilizadas, mesmo pelas mais trágicas consequências.

Nas redes sociais espalharam-se comentários [11] infelizes com forte cunho moralista e muitas vezes contraditório, muitos deles vindos de mulheres repetindo o tom “se filmou é porque quis”, ou “[o vídeo] não era de uma menina inocente. Era de uma pessoa experiente no sexo”, como se pode ler logo abaixo do artigo Caso Júlia: Localizado novo vídeo de sexo e amiga tenta suicídio com veneno [12].

“Pornô de revanche”

O problema do “pornô de revanche”, nome como o fenômeno ficou conhecido pelo mundo, de fato necessita de respostas rápidas da sociedade, para evitar que episódios trágicos como estes voltem a acontecer. Projetos de lei para prevenir e prever sanções legais especificamente para estes casos vem sendo discutidos [13] em todo mundo. No Brasil, o deputado federal Romário apresentou [14] um projeto de lei que criminaliza a divulgação indevida de material íntimo.

Porém, o debate sobre as raízes pelas quais as mulheres são colocadas nesta situação também é necessário e urgente, como ressaltou o jornalista Lino Bocchini [15] em seu post “Quem é culpado pelo suicídio da garota de Veranópolis?” [16]:

Vivemos numa sociedade que cobra a cada instante que você tenha sucesso. E, no caso das mulheres, por sucesso entenda-se uma cruel e impossível equação na qual você tem que ser magra, bonita e gostosa mas, por outro lado, não pode ser “fácil”, tem que “se dar o respeito”. Tem que ser bem sucedida profissionalmente. E tem que assistir o exemplo de uma mocinha da novela das oito que, aos 17 anos, usa shorts minúsculos e rebola para milhões de pessoas toda noite mas, fora das telas, assume o papel de futura esposa respeitosa do namorado jogador de futebol famoso.

As mulheres brasileiras são colocadas nesta difícil dicotomia entre a valorização da sensualidade e seu alijamento da sexualidade, e como colocou Lady Rasta, são divididas em categorias:

A mulher tem que ser precavida, se guardar, ser ciosa do seu “tesouro” (em que século estamos estamos mesmo?), que não deve ser visto a despeito de todas as câmeras existentes no mundo. Ela, ELA deve ser responsável, já que os homens, esses irresponsáveis, não entendem que todas as mulheres são iguais e “eles” decidiram que “tem mulher pra casar e mulher pra zoar”.

Num país que lida de maneira contraditória com a sexualidade e mesmo com o corpo da mulher, como refletiu a fotógrafa Camila Cornelsen [17], ir além de perspectivas que reforçam as desigualdades de gênero e a repressão parece ser de fundamental importância para que essa e outras formas de violência contra a mulher sejam superadas, como também destacou Camila Pavanelli em seu outro post sobre o assunto: “Precisamos falar sobre sexo” [18].

A causa número um de suicídio é depressão. A depressão é tratável e o suicídio é evitável. Pessoas passando por crises emocionais podem obter ajuda através de linhas de apoio confidenciais. Viste o website Befrienders.org [19] para encontrar o disque prevenção de suicídio no seu país.