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Debate sobre reforço de médicos cubanos no Brasil apresenta sintomas de racismo

Categorias: América Latina, Brasil, Mídia Cidadã, Relações Internacionais, Saúde
Enfermeiro prepara injeção anti-ofídica. Existem muitas dificuldades na prestação de cuidados de saúde a comunidades locais da Amazônia no Brasil. Durante o salvamento de um residente do Rio Negro mordido por uma serpente (Surucucurana), levou oito horas a chegar ao hospital mais próximo em Novo Airo. Foto: Marcio Isensee e Sá copyright Demotix (11/04/2013) [1]

Novo Airão, Brasil (11/03/2013): enfermeiro prepara injeção anti-ofídica. Existem muitas dificuldades na prestação de cuidados de saúde a comunidades da Amazônia. Durante o socorrimento a um residente local mordido por uma serpente (Surucucurana), a viagem pelo Rio Negro até ao hospital mais próximo levou oito horas. Foto: Marcio Isensee e Sá copyright Demotix

Os primeiros 400 médicos cubanos [2], participantes do programa Mais Médicos do governo federal brasileiro, já desembarcaram no país. Junto com suas bagagens para três anos de trabalho em regiões do Brasil onde falta assistência médica, trouxeram o debate em torno dos problemas do sistema de saúde pública brasileiro.

A introdução de médicos estrangeiros na rede pública de saúde do Brasil já gerava controvérsia e dividia opiniões na rede, muitas vezes marcadas por posições intolerantes e racistas [3].

1957, a estudante Elizabeth Eckford chegando para o seu primeiro dia de aula numa escola sem separação racial em Little Rock, Estados Unidos. 2013, médico cubano sendo vaiado por médicos brasileiros, Fortaleza. Imagem partilhada mais de 39 mil vezes no Facebook. [4]

A chegada de uma estudante ao seu primeiro dia de aula numa escola sem separação racial (1957) e a chegada de um médico cubano ao programa Mais Médicos em Fortaleza (2013). Imagem partilhada mais de 39 mil vezes no Facebook.

No entanto, a questão ganhou outras cores após o protesto de um grupo de médicos [5]de Fortaleza, Ceará, à saída de um evento de recepção aos médicos cubanos no passado dia 26 agosto. O ataque aos recém-chegados pelo grupo de manifestantes com vaias e palavras hostis foi gravado em um vídeo [6] que se tornou viral na rede brasileira.

Uma foto do protesto que mostra um médico cubano negro sendo vaiado por médicas (à direita), ganhou todas as capas de jornais e a timeline brasileira [7] (#MaisMédicos), se tornando a ilustração oficial da discussão. Na semana que celebrou os 50 anos da Marcha sobre Washington [8], a imagem serviu também como uma releitura histórica, e ajudou a centralizar o debate em torno do racismo [9].

Em entrevista [10], o médico José Maria Pontes, presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará (SimeC) negou que os ataques fossem direcionados aos médicos cubanos e que os gritos de “escravos” fossem uma manifestação racista. Segundo Pontes, os protestos tinham como alvo o representante do Ministério da Saúde.

A ministra de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Bairros, lamentou [9] a recepção que foi feita aos médicos cubanos, constatando que “ainda existe racismo e que ainda se questiona o lugar que os negros ocupam na sociedade” brasileira.

#Mais Médicos: a hashtag da questão

Ilustração do médico e desenhista Solon Maia no seu blog, Meus Nervos (CC BY-NC-ND 3.0) [11]

Ilustração do médico e desenhista Solon Maia no seu blog, Meus Nervos (CC BY-NC-ND 3.0)

Segundo dados oficiais do governo, atualmente, 80% da população brasileira [12] depende do atendimento do sistema público de saúde, o SUS [13] (Sistema Único de Saúde). No entanto, a realidade mostra que, apesar do aumento no número de médicos formados [14] no país nos últimos anos, as regiões norte e nordeste [15], especialmente em cidades do interior, sofrem com a falta de profissionais.

Foi assim que surgiu a ideia do Mais Médicos [16], programa criado pelo governo federal para “fixar médicos brasileiros e estrangeiros na rede pública de saúde”.

Na primeira etapa, as vagas do programa foram priorizadas a médicos brasileiros. Ou seja, sem tirar o emprego de brasileiros, os estrangeiros só irão trabalhar nos 700 municípios [17] que não atraíram o interesse de nenhum médico do país. Os cubanos, no entanto, fazem parte de um acordo diferenciado [18] entre Cuba e o Ministério da Saúde do Brasil, mediado pela OMS [19] (Organização Mundial de Saúde).

A ilha comunista é considerada pela organização “a nação mais desenvolvida do mundo [20]” no setor da saúde, com índices de mortalidade infantil inferiores a países como EUA e Canadá, graças a prática da medicina preventiva. O país de Fidel é superior em números, como mostra o artigo publicado por Vinicius Galeazzi no site Sul 21 [21]:

No Brasil, há 1,8 médicos para cada 1.000 habitantes. Na Argentina, 3,2. O programa Mais Médicos visa elevar nosso índice para 2,5 médicos para mil habitantes: um incremento de mais de 170.000 médicos, quando nossas escolas de medicina formam cerca de 18.000 médicos por ano. Nesse contexto, não é aceitável que a corporação dos médicos brasileiros não concorde que se chame médicos de outros países para os postos carentes, onde eles não querem ir. Alegam que não há infraestrutura e, sem ela, os médicos não podem trabalhar, mas não lhes importa, parece, que pessoas adoeçam durante essa espera de infraestrutura.

Isenção de prova alimenta a polêmica

O acordo firmado pelo governo brasileiro para regulamentar a atuação dos cubanos no país, proibindo-os por exemplo de mudar de cidades ou exercer a medicina fora do âmbito do intercâmbio, isenta-os do exame de revalidação do diploma médico em território nacional, Revalida [22]. Parte dos brasileiros defende que “atrair um médico estrangeiro ao Brasil sem validar seu diploma não é importá-lo, é contrabandeá-lo [23]”.

Cerca de 84% dos profissionais cubanos [24], ou formados em Cuba, que irão atuar no Brasil já têm mais de 16 anos de experiência comprovada, aponta o R7. Nos últimos anos, as primeiras posições [25] do próprio Revalida foram ocupadas por alunos de escolas de medicina da Venezuela e de Cuba.

Duas entidades de medicina, Associação Médica Brasileira (AMB) e o Conselho Federal de Medicina (CFM), chegaram a entrar com ações na justiça [26] para tentar suspender o programa, alegando que a contratação sem a revalidação do diploma é ilegal. Porém, foram barradas. No estado de Minas Gerais, o presidente do Conselho Regional de Medicina chegou a fazer ameaças de que mandaria prender quaisquer médicos atuando sem o registro. O ministro da saúde, Alexandre Padilha [27], se manifestou em sua conta do Twitter:

Classe dividida: o que dizem os médicos

A classe médica brasileira acabou dividida. Muitos médicos contrários a vinda de colegas de fora aproveitaram o momento para apontar os problemas enfrentados por eles, principalmente a falta de estrutura e a baixa remuneração [29]. O médico Rodrigo Fontoura, que trabalha há sete anos no Sistema Único de Saúde (SUS) usou o Facebook [30]para desabafar:

Não me aborreça depois de uma dia de plantão no SUS quando vou para casa triste e frustrado pensando que não fiz o meu melhor para alguns pacientes, porque não tive recursos básicos.
Não me faça ter pena da sua ignorância sobre o real motivo das vaias aos cubanos, portugueses, espanhóis ou brasileiros do Mais Médicos.
Essas vaias não são para os seres humanos que ali estão, e sim para o que eles representam.
Eles são a representação do descaso com a saúde, com todos os profissionais (médicos, enfermeiros, téc. Enfermagem, etc) que diariamente lidam com a mazela da sociedade, sem recursos.

De outro lado, estão os médicos receptivos a ideia. David Oliveira de Souza, membro da organização Médicos sem Fronteiras, publicou uma carta aberta aos estrangeiros em seu blog [31] e no jornal Folha de São Paulo, onde aponta que muitos dos problemas de saúde da população brasileira podem ser resolvidos apenas com atendimento e declara:

A sua chegada responde a um imperativo humanitário que não pode esperar. Em Sergipe, por exemplo, o menor Estado do Brasil, é fácil se deslocar da capital para o interior. Ainda assim, há centenas de postos de trabalho ociosos, mesmo em unidades de saúde equipadas e em boas condições.

Além de ajudar com os problemas da saúde no Brasil, espera-se que a iniciativa sirva também para mudar o perfil da medicina brasileira, ampliando as oportunidades e o perfil de quem tem acesso ao exercício da profissão. Casos como o da estudante de medicina Cintia Santos Cunha, com origem em uma comunidade carente, que emigrou para Cuba para se tornar médica:

Entre polêmicas e debates ainda a serem desenvolvidos, uma certeza foi apontada pelo comentarista politico Bob Fernandes, em vídeo [32]com mais de 20 mil compartilhamentos nas redes sociais:

Milhões que moram nestas cidades (sem médicos) não querem saber se o médico é baiano, sueco ou cubano. Querem médicos. E medicina. Sabem que um médico é melhor do que nem um médico. A boa medicina será cobrada, e muito, nesse caminho. O resto é o jeito de cada um enxergar a vida.