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“Sem violência”: Desmilitarização da polícia em debate no Brasil

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Governança, Lei, Mídia Cidadã, Protesto

Este post faz parte da nossa cobertura especial Revolta do Vinagre [1]

Em resposta às denúncias de violência flagrante de policiais contra jornalistas e civis [2] durante os protestos do último mês no Brasil, “Sem violência [3]” se tornou o grito comum dos manifestantes.

O debate sobre a desmilitarização das polícias militares no país não é novo. Herança da época da ditadura no país (1964-1985), a Polícia Militar surgiu como solução a partir da extinção da Força Pública e da Guarda Civil. Após o golpe de 1964, o novo governo abandonou a ideia da criação de uma polícia civil e única e implantou o modelo militar. Hoje, quase todo o policiamento urbano no Brasil, é feito por polícias militares ligadas aos governos de cada estado, e o país segue sendo o único no mundo a ter uma polícia militar que atua fora dos quartéis [4].

Foto de Calé Merege no Facebook (usada com permissão). [5]

Foto de Calé Merege no Facebook (usada com permissão).

Os protestos recentes ressuscitaram a questão para o debate. No dia 01 de julho de 2013, uma aula pública [6] organizada no vão do Museu de Artes de São Paulo (MASP), pelo grupo Ocupa Sampa, discutiu o assunto que encontrou os manifestantes brasileiros nas ruas. Túlio Vianna, professor de Direito Penal, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), palestrante convidado, defendeu que a concepção do treinamento militar é o que desencadeia ações excessivamente violentas por parte das polícias. Para Vianna [7],

A polícia não pode ser concebida para aniquilar o inimigo. O cidadão que está andando na rua, que está se manifestando, ou mesmo o cidadão que eventualmente está cometendo um crime, não é um inimigo. É um cidadão que tem direitos e esses direitos tem de ser respeitados.

Comparando o caso brasileiro com de outras polícias do mundo, o professor lembrou ainda que

Quando a sociedade opta por uma polícia militar, o que essa sociedade quer é uma polícia que cumpra ordens sem refletir. É claro que quando se dá um treinamento onde o próprio policial é violentado, como vou exigir que esse indivíduo não violente os direitos de um suspeito?

Protesto na Avenida Paulista - SP - 20/06/13 [8]

Uma faixa nos protestos na na Avenida Paulista em 10 de junho lembra os massacres do Carandiru, em São Paulo, e da Candelária, no Rio de Janeiro. Ambos foram orquestrados por comandos das Polícias Militares de cada estado. Foto: Caio Castor/Facebook

O cassetete nos movimentos sociais

A “Revolta da Catraca [9]”, ocorrida em Santa Catarina, em 2005, foi a primeira grande manifestação ligada a questão do transporte público [10] a ter impacto no país. O episódio também terminou com denúncias de manifestantes feridos e presos em meio a um protesto pacífico, como mostra esse vídeo postado por Vinícius (Moscão) [11]

Nas periferias, “onde as balas não são de borracha [12]”, homicídios e atos violentos cometidos por agentes do Estado, apesar de não chamarem atenção da mídia todos os dias, dão uma amostra dos problemas da militarização da polícia [13], como indica a Justiça Global Brasil, em nota pública de 24 junho de 2013.

Entre os episódios reportados pelo Global Voices estão a reintegração de posse [14] da reitoria da Universidade de São Paulo (USP), em 2011, após protestos estudantis [15] contra o aumento do efetivo da PM no campus; a desocupação do Pinheirinho [16], na cidade de São José dos Campos, em São Paulo, com mais de seis mil pessoas desalojadas [17] de suas casas; e o conflito com manifestantes que protestavam contra a privatização do espaço público [18], em razão das obras da Copa do Mundo, em Porto Alegre.

Contra o sistema

Com a quarta maior população carcerária [19] do mundo, setor de segurança privada em expansão [20], fica cada vez mais óbvio que o sistema não funciona.

Órgãos internacionais como a Anistia Internacional [21], o Conselho de Direitos Humanos da ONU [22] e o Departamento de Estados dos Estados Unidos [23], já haviam se pronunciado, em 2012, pedindo que o Brasil acabe com os grupos de extermínio dentro das corporações e encaminhe o processo de desmilitarização total da polícia.

Apesar de revelar a face violenta da polícia militar, os protestos recentes também mostraram que dentro da corporação há soldados que discordam do sistema [24].

Logo nos primeiros dias de manifestação em São Paulo, em junho, um soldado, sem concordar com as ordens para atacar os manifestantes, substituiu o spray de pimenta por água. Utilizando as redes sociais para justificar sua ação, em uma postagem com mais de 3 mil compartilhamentos [25], apagada pouco tempo depois, Ronaldo afirmou:

O spray de pimenta é uma agressão violenta utilizada sem necessidade na maioria das situações e a corporação não pode fechar os olhos para isso. Além do mais, os protestos são pacíficos e totalmente legítimos

A importância da causa tem crescido dentro das corporações. [26] Entre as quarenta diretrizes aprovadas dentro da Primeira Conferência Nacional de Segurança Pública [27] [pdf], realizada em Brasília, em 2009, duas apontavam para a necessidade de desmilitarização. Em pesquisa [28] divulgada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP) dos 64 mil agentes de segurança entrevistados, 40 mil apoiaram a causa. Entre os policiais militares, a adesão foi ainda maior: 77% [29].

#PEC102

No Senado, tramita uma proposta de emenda a Constituição, que autoriza os estados a desmilitarizarem e unificarem sua polícias militares. De autoria do senador Blairo Maggi, a PEC 102 [30], foi levantada como bandeira pelos próprios policiais nas paralisações ocorridas em todo o país no início de 2012. A proposta daria aos policiais direitos a greve e sindicalização [31], que hoje são vetados pela Constituição, uma vez que estes estão submetidos ao código de conduta e disciplina militar.

Foto de manifestantes carregando a faixa sobre a PEC 102, no Maranhão. [32]

Foto de manifestantes carregando a faixa sobre a PEC 102, no Maranhão (3 de julho de 2013). Foto: Blog do Caxorrao / Facebook. [32]

No Twitter, usuários defenderam a proposta sob a hashtag #PEC102 [33]. @willcjc [34] escreveu:

@willcjc [35]: Desmilitarizar e Unificar as polícias é fulminar as estruturas repressoras de uma entidade adestrada pela ditadura. Sim à ‪#PEC102!

A proposta, no entanto, não traz unanimidade. Para a Associação Nacional dos Procuradores da República [36][pdf] ela é “inconstitucional”, uma vez que “colide com cláusulas pétreas” ao mitigar “o princípio da separação dos poderes e da forma federativa do Estado”. Contestando a criação de conselho Nacional de Segurança, inclusa na PEC, em nota divulgada, a associação diz:

(..) a Polícia não tem autonomia funcional, não se amoldando, portanto, à forma de controle por meio de Conselho. Supor a criação de uma polícia independente atenta contra o princípio da separação de poderes.

De toda forma, o debate já é um início. Como declarou Antônio Carlos, diretor executivo do Grupo de Defesa dos Direitos Humanos Rio de Paz [37], em entrevista ao Jornal do Brasil [38]:

Estamos vivendo um momento histórico e é hora de aproveitá-lo para lutar. O país precisa dessa mudança, mas, devido a um espírito corporativista, não há avanços significativos.