América Latina: Projeto Nosotros sai em busca da latinidade

Após a série sobre quadrinhos [en] publicada no Global Voices Online, voltamos as atenções para um dos personagens do artigo – o Projeto Nosotros, uma iniciativa de dois jovens comunicadores brasileiros que construíram o próprio caminho mapeando o trabalho de talentos criativos e artistas que têm o dom, enquanto exploram a rica matéria cultural da moderna América Latina, para além dos estereótipos. Viajando pela região, eles conhecem e entrevistam jovens produtores da cultura contemporânea, compartilhando seu trabalho online e por meio de mídias sociais. 

Rising Voices (RV): O que os levou, em primeiro lugar, a pegar a estrada em busca dessas múltiplas identidades que, no final das contas, somos nosotros?

Antes de mais nada, nós queríamos passar um tempo morando fora do Brasil porque nunca tivemos essa experiência antes, mas não tínhamos ideia aonde iríamos. Então começamos a buscar, como a maioria dos brasileiros, cursos e lugares nos Estados Unidos e em alguns países da Europa. Foi quando nos demos conta de como conhecemos e nos interessamos pouco por nossa própria terra.

Em seguida, fomos reparando como o Brasil não se sente parte da América Latina, que nossa visão sobre ela é ainda reducionista como a de grande parte dos estrangeiros, e como perdemos com essa falta de troca e união. O próprio Brasil é vítima dos estereótipos, e por isso mesmo deveríamos buscar essa quebra de preconceito a partir da aproximação cultural. Se nós, brasileiros, não somos só carnaval, praia e futebol, certamente o México não é só de mariachis, em Cuba não se ouve só salsa e na Argentina só tango.

[Entrevista com designers e músicos de Havana, Cuba.]

Antes de criar esse projeto, nós trabalhávamos com Comunicação, em agência de publicidade e em canal de televisão. Nesses meios, é sempre constante a busca de referências de outros artistas e, se o assunto for arte contemporânea, tecnologia, modernidade, os países desenvolvidos são sempre os primeiros da lista em nossas pesquisas.

Por conta de tudo isso, resolvemos viajar em busca dos latino-americanos como nós: jovens, criativos, urbanos, contemporâneos, inseridos em um cenário global. A América Latina já é muito conhecida por suas belezas naturais, folclore e povos ancestrais, então achamos que já está na hora de mostrar a nossa cultura urbana e produções artísticas de hoje.

Com o foco nos jovens criativos modernos, porém sem renegar o passado, criamos o que virou hoje o Projeto Nosotros.

Quantos nomes pode ter uma camiseta? Imagem do Projeto Nosotros, utilizada com permissão.

Quantos nomes pode ter uma camiseta? Imagem: Projeto Nosotros, utilizada com permissão.

RV: Qual o papel das ferramentas digitais para ajudar a fornecer as respostas que vocês procuram nas viagens?

A internet é nossa ferramenta principal no Projeto Nosotros. É através dela que encontramos grande parte dos artistas entrevistados, buscamos informações e compartilhamos nosso conteúdo. Desde o início, o conceito do projeto é dividir nosso material com o maior número de pessoas possível. Chama-se “nosotros” porque é de todos que criam, são entrevistados, acompanham pelo site e compartilham nas redes sociais. E nada disso faria sentido se o acesso ao que produzimos fosse restrito, então tudo sobre o Nosotros está disponível online em português, espanhol e inglês, inclusive os videos que são todos legendados.

As redes sociais do projeto também se mostraram muito eficientes, talvez seja o maior canal de comunicação do público com a gente, e também o mais fácil de medir em acessos e compartilhamentos.

Hoje, temos a felicidade de ter nossos vídeos vistos em mais de 100 países, em todos os continentes, e receber ótimos retornos das pessoas que cada vez mais nos mostram que não somos os únicos que acreditam na América Latina unida pela arte e cultura jovem.

[Vídeo sobre designers e ilustradores de Montevidéu, Uruguai]

RV: Como vocês estão utilizando mídias digitais e cidadãs na concretização dos projetos? Como elas têm sido usadas para viabilizar a visita em toda a região latinoamericana e promover o estabelecimento de laços culturais com jovens artistas no diálogo global?

Além de toda a influência e ajuda que citamos na resposta anterior, buscamos e entramos em contato com os artistas através da internet. Também temos apresentado palestras em universidades e eventos para falar sobre o projeto e apresentar os artistas entrevistados, mostrando um outro lado da cultura latino-americana. Já realizamos exposições em alguns desses eventos e isso incentiva nossa discussão sobre identidade enquanto latino-americanos e tem ajudado a difundir a produção latina aqui no Brasil.

[Entrevista com um artista chileno que produz toy arts]

RV: Em um mundo cada vez mais conectado, povoado por um senso de cidadania global, por que ainda é relevante divulgar essa identidade?
Com um mundo mais conectado e unificado, nossas referências e influências vêm de todas as partes, mas as nossas origens sempre terão grande força em nosso comportamento, cultura e naquilo que produzimos. É o que nos identifica, nos diferencia e deveria nos unir mais.

Nossa geração já não carrega tanto o estigma de colonizados que tanto enraizou a ideia de que “o que vem de fora é melhor”. A internet e as novas tecnologias democratizaram a produção e disseminação de artistas, e isso faz com que mais pessoas possam compartilhar, comparar e conhecer o que se tem feito por aqui. Isso nos ajudou a reconhecer que também podemos ser grandes referências quando o assunto é criatividade. A adversidade ou falta de recursos que podemos encontrar, muitas vezes nos torna criativos mais completos e versáteis. Acreditamos que nossa produção reflete essa mistura única que temos na América Latina.

Foto do Projeto Nosotros, utilizada com persmissão.

Foto: Projeto Nosotros, utilizada com permissão.

Então, ainda é importante divulgar quem somos, não só para o resto do mundo, mas para nós mesmos. Criar essa relação de unidade entre os artistas latino-americanos nos enriquece como grupo e individualmente, quando é igualmente importante fazer parte de um todo e mostrar nosso diferencial. O Projeto Nosotros, não quer reforçar fronteiras, e sim ajudar a diluí-las. O que valorizamos é a identidade cultural e a união das pessoas e o reconhecimento delas enquanto grupo através da arte e da cultura.

[Vídeo de um artista da Cidade do México; nota: contém images de quadrinhos com temas adultos]

RV: Pode-se afirmar que há artistas que estão alcançando reconhecimento global, graças, em parte, à internet e, quem sabe, até mesmo devido às suas raízes latinas, e que não recebem esse tipo de distinção em sua terra natal?

Podemos dizer que este é o caso de alguns dos artistas entrevistados pelo Projeto Nosotros. Existe artista plástico no Chile que recebe mais convites para expor nos Estados Unidos do que em seu próprio país e designers que atendem a clientes estrangeiros, mas sentem dificuldade em atender o mercado local de sua cidade.

Nossa impressão disso é que aqui na América Latina as pessoas valorizam mais o que vem de fora quando se trata de cultura contemporânea. Ainda se espera algo tradicional e folclórico dos artistas locais, então muitas vezes os meios de comunicação, as empresas e o próprio público aguardam alguma grande entidade – de preferência estrangeira – reconhecer alguém para que a cidade ou país o veja como um grande artista.

[Vídeo sobre a colaboração entre um artista e um músico na Guatemala]

RV: Dada a natureza compartilhada, e online, do seu trabalho, como vocês abordam a sustentabilidade do projeto?

O Projeto Nosotros é 100% independente, e isso é muito bom porque podemos conduzi-lo da forma que realmente acreditamos sem ter que reportar a ninguém para aprovar qualquer conteúdo que publicamos. Ao mesmo tempo, somos nós que custeamos tudo nele. Toda a viagem foi feita com nossos próprios recursos e hoje está difícil manter o mesmo ritmo de publicações porque temos que conciliar o projeto com outros trabalhos, estes sim remunerados. Somos autônomos e trabalhamos por conta própria desde o Nosotros, então isso ocupa muito do nosso tempo.

A única ajuda financeira externa a nós e a nossa família foi através de um edital do Ministério da Cultura [do Brasil]. Fomos contemplados por um edital de Intercâmbio Cultural e poderíamos viajar durante o mês de abril com os gastos de hospedagem, transporte e produção financiados pelo MinC. Fomos para 5 cidades brasileiras entre Santa Catarina e Paraná coletando novas entrevistas, dando palestras e realizando uma exposição de cartazes com ilustradores e designers que fazem parte do projeto. Este foi nosso primeiro “sim” depois das recusas que recebemos para patrocinar tanto a viagem quanto o documentário e exposição que vamos fazer.

De qualquer forma, recebendo financiamento ou não, vamos desenvolver todos os desdobramentos do projeto. Esse é um lado importante de quando se trabalha com produção independente e naquilo que realmente gosta. Se não fazemos por dinheiro, a falta dele nunca será um fator limitador para não realizarmos aquilo que queremos.

Parque Rodó, Uruguai. Foto: Projeto Nosotros. Utilizada com permissão.

Parque Rodó, Uruguai. Foto: Projeto Nosotros. Utilizada com permissão.

RV: E o que dizer do outro lado disso: vocês identificam a globalização das diversas culturas latinoamericanas? E vocês acreditam que na medida em que as pessoas se conectam mais, globalmente, elas acabam se homogeneizando?

Sem dúvida as culturas estão cada vez mais se aproximando e se misturando, e acreditamos que aqui na América Latina isso aconteça de forma ainda mais natural porque a miscigenação de povos está em nossa origem.

Mas também vemos que muitas vezes as pessoas não percebem tanto essa transformação porque também não se perguntam o que está acontecendo. Percebemos com o Nosotros que, ao serem questionados sobre de onde vêm as referências e influências, os artistas começavam a refletir e a se dar conta naquele momento. Talvez por nossa vida estar muito agitada e tudo ser muito rápido hoje em dia, não paramos para analisar as mudanças e as conexões que a globalização tem trazido, mas também não vemos isso de forma negativa. Talvez essa mudança esteja sendo feita de forma gradual e orgânica, por isso não percebemos.

Talvez se o próprio latino-americano parasse para se perguntar sobre suas raízes e manifestações culturais, iria se dar conta que tem um continente muito maior do que imagina. Talvez um dia, quando a América Latina se der conta da riqueza cultural que tem, ela já esteja mais inserida, reconhecida com igualdade e admirada em todas as partes do mundo. É o que nós torcemos e trabalhamos para que aconteça.

Ao mesmo tempo, não acreditamos que a globalização resultará na homogeneização. Quanto mais próximas são as referências, mais se destaca o que cada artista tem de mais único nele. Ninguém vê as coisas da mesma forma, e cada representação artística terá uma interpretação diferente, uma abordagem singular. Além disso, o meio onde vivemos sempre será uma força muito grande na cultura de cada povo, e isso contribui ainda mais para continuarmos com as ricas diferenças no mundo globalizado. Se cada pessoa se lembrar de onde é e tiver orgulho de suas raízes, nada será padronizado ou totalmente homogêneo. Podemos ter o melhor de dois mundos balanceando a globalização com a valorização e respeito às diferenças.

Para saber mais, assista à entrevista com o Projeto Nosotros produzida pelo coletivo  Si No Puedo Bailar No Es Mi Revolución [Se não posso dançar, não é minha revolução] grupo que promove colaborações artísticas e novas ideias na América Latina:

Você pode seguir o Projeto Nosotros no Facebook e assistir a outros de seus vídeos no Vimeo.

1 comentário

  • Gil Marcelino

    PARABÉNS pelo excelente e interessante trabalho que estão fazendo.
    Gostaria de me apresentar: Resido em Brasília-DF, onde tenho o meu trabalho junto com mais uns amigos artesãos.. Meu face é Atelier Gil Marcelino. Caso achem interessante, estou ao inteiro dispor dos senhores para quaisquer esclarecimentos que não constem no face e se, possível, recebê-los para que conheçam o nosso acervo. Cordiais Saudações Gil Marcelino

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