Este post escrito por Andrea Dipp, da Agência Pública, foi originalmente publicado como reportagem de título “VOU BOMBAR PARA COBRAR MAIS NA COPA” e faz parte da cobertura especial #CopaPública sobre a Copa do Mundo 2014. O material será publicado numa série de três artigos no Global Voices Online. Esta é a primeira parte da série.
Muito antes de Fortaleza ser confirmada como cidade sede da Copa do Mundo de 2014, as travestis Carla e Luana [nomes fictícios] já trabalhavam nas imediações da imponente Arena Castelão, área histórica de prostituição na cidade. Nas avenidas que rodeiam o estádio e em algumas ruas que adentram os bairros pobres da região, elas, as colegas e prostitutas dividem as calçadas e os clientes em busca de programas que custam de 5 a 50 reais.
Durante a tarde de uma segunda-feira quente e seca, típica de abril nordestino, quando acompanhei o trabalho do pessoal da Associação Barraca da Amizade (ONG que há 26 anos atende e acolhe crianças e adolescentes em situação de rua e desde 2009, a pedido das meninas e meninos, também desenvolve um trabalho de combate a exploração sexual) o movimento não era tão grande – duas prostitutas e três travestis se esgueiravam pelas poucas sombras oferecidas pelos muros altos de uma grande empresa, perto de uma rotatória, fugindo do calor. Carla e Luana descansavam em casa de uma noitada de diversão. Sem cafetinas a quem prestar contas, as duas podem fazer seu horário de trabalho. As que estavam na pista, eram abordadas pelos educadores da Barraca, que distribuem preservativos e gel lubrificante como forma de redução de danos e de aproximação. Paulinha, como a assistente é carinhosamente conhecida entre as travestis, explica:
Hoje, além das mulheres e adolescentes, trabalhamos com 30 travestis aqui da área, levando insumos, marcando exames nos postos de saúde, oferecendo cursos profissionalizantes e atendendo a algumas demandas delas. Há pouco tempo nós conseguimos, após articulação com orgãos oficiais, a transferência de um médico que fazia piadas homofóbicas com as travestis de um posto de saúde da região. Esses resultados ajudam a fortalecer essa confiança no nosso trabalho.
Por confiarem em Paulinha, Carla e Luana abriram as portas de sua casa próxima à Arena e me receberam para falar sobre suas expectativas e medos com a chegada da Copa, e também sobre um fenômeno que têm crescido com a aproximação do megaevento na cidade.
A viagem do silicone
Carla, 25 anos, que há 10 se prostitui no entorno do Castelão, apontando para as partes do corpo que pretende aumentar e diz:
Eu vou agora em julho para São Paulo botar silicone no peito, 450, 500 ml em cada. Também vou bombar de novo [por mais silicone industrial no corpo]: bunda, quadril, perna e joelho. Aí na Copa eu vou cobrar mais… O silicone industrial dói demais, você fica pra morrer! A mulher injeta e vai fazendo uma massagem para ele espalhar. Mas é a dor da beleza, né?
Carla afirma que foi para a “pista” com 15 anos porque quis, assim como a amiga Luana, de 22 anos, que diz ter começado a fazer programas aos 17 também por opção:
Eu fui uma das primeiras a chegar aqui no Castelão. Hoje a coisa está feia, tem muita postituta fumando pedra e isso queima nosso filme. Ao mesmo tempo que a gente espera que a Copa aumente o movimento, tem medo que a polícia queira limpar a área. Você acha que o prefeito vai querer mostrar isso para os gringos?
A deficiência visual de Luana parece não atrapalhar o trabalho ou seus planos e nunca é mencionada. Entre um comentário e outro sobre a reprise da novela que está passando na televisão, ela diz:
Mas a gente é atrevida, se me tirarem daqui vou para ali!…Peitão e bundão chamam a atenção aqui. Em São Paulo não, porque as mariconas sabem que trava que é muito bombada, é mais rodada, preferem as com carinha de menino. Mas aqui no Ceará quem tem peitão é mais procurada.
Luana, que já foi para São Paulo colocar as próteses, explica como funciona:
Tem as cafetinas que levam a gente, pagam a passagem e a operação em uma clínica clandestina. Deve sair uns dois mil reais para elas. Aí ela cobram o dobro ou o triplo e mais uma diária de 30 a 50 reais para a gente morar na casa delas, e a gente vai trabalhando para pagar. Trabalha muito, muito mesmo.
Carla acrescenta:
Eu já fui fazer programa em São Paulo. É bom porque você ganha mais, mas por outro lado você tem que trabalhar de qualquer jeito, mesmo se estiver doente, não importa. Ninguém vai te dar um remédio. Eu já vi umas travestis apanharem de pau de uma cafetina.
Segundo as duas, o movimento entre as cidades aumenta a cada dia. Luana comenta:
Só essa semana, fiquei sabendo de quatro que foram. Mês que vem sei de mais cinco. É muita travesti botando peito.
Ela conta que pagou três mil reais por suas próteses de cerca de 400 ml porque era conhecida da cafetina e que ficou oito meses trabalhando em São Paulo para pagar a dívida. Muitas acabam não voltando porque viram dependentes químicas da cocaína – que ajuda a aguentar o trabalho intenso e é mais acessível na cidade – e não conseguem pagar suas dívidas. Uma delas fugiu da casa onde estava e neste momento está desaparecida, como me contaria depois Marcela [outra travesti] que conheci já em São Paulo. Lídia Rodrigues, outra educadora da Barraca da Amizade, conta que algumas travestis chegam a fazer de 30 a 40 programas por dia em São Paulo e que os educadores têm percebido que este trânsito para a capital paulista está se intensificando. Lídia comenta:
Não dá para afirmar que é somente por causa da Copa, mas elas sabem que virão muitos turistas e muitos homens para a área. Ao mesmo tempo a gente tem medo de uma higienização massiva. Provavelmente o termômetro disso vai ser a Copa das Confederações.