Salvar vidas em pleno surto de cólera, lutar contra a desflorestação ilegal, mas também, claro está, unir a comunidade em torno da rica musicalidade do país: eis algumas das façanhas alcançadas no quotidiano das rádios comunitárias da Guiné-Bissau.
O documentário A Voz da População “mostra o percurso das rádios comunitárias na Guiné-Bissau, os desafios que se levantaram ao seu desenvolvimento, a sua apropriação pelas comunidades e os princípios de funcionamento”. Assim é apresentado, na sua sinopse, este filme de 2012 realizado pelo cineasta polaco Andrzej Kowalski, com argumento da holandesa Lucia van den Bergh.
Ao longo de 26 minutos, são entrevistados diversos protagonistas das cerca de 30 estações que cobrem praticamente todo o país, chegando até às zonas mais isoladas.
Se hoje representam o meio de comunicação mais popular da Guiné-Bissau, em parte deve-se ao impulsionador radio-televisivo Carlos Schwarz, director da ONG Acção para o Desenvolvimento (AD).
Em entrevista para o documentário, Schwarz declara as rádios comunitárias como “uma força adquirida”:
Estas rádios têm o apoio, têm as costas, vivem nas costas da população. E isso faz com que o poder tenha muitas dúvidas, muitas reservas em contestar ou querer silenciar estas rádios. E sobretudo porque estas rádios têm-se comportado com uma dignidade, com um profissionalismo, com um rigor político que ninguém pode dizer que estão ao serviço de partidos ou de interesses económicos. Mas de facto representam exclusivamente as preocupações das populações locais.
E isso é a grande força destas rádios e faz com que o governo muitas vezes – não as apoiando – também não as combata. A independência em relação aos interesses políticos e económicos é a pedra de toque das nossas rádios comunitárias. No dia em que elas abdicarem deste princípio, estão a condenar-se a si próprias e estão em vias de desaparecer.
“A Voz da População” mostra também o importante papel das rádios comunitárias na disseminação da cultura e no fortalecimento da democracia e cidadania. Mas não só. Não raramente as emissoras assumem a sua responsabilidade cívica, informando sobre conflitos e problemas de índole social, ambiental ou de saúde pública.
Tal foi o caso da pioneira Rádio Voz Quelelé, que no ano da sua criação, 1994, informava a população “nas várias línguas das etnias do bairro” sobre medidas preventivas para um surto de cólera que tinha disparado na região. “O bairro terá sido o menos atingido de Bissau por esta doença, com apenas seis casos confirmados”, informa o blog da rádio:
O maior sucesso da rádio Voz de Quelele foi sem dúvida o combate à cólera, uma actividade que se baseou em duas vertentes: a) Organização da população para limpeza do bairro, remoção do lixo desinfecção do poços, evacuação dos doentes para o hospital (a AD teve um veículo sempre à disposição), desinfecção em casa dos doentes, visitas diárias dos membros do comité dos moradores a cada residência a fim de detectar casos de cólera; b) Sensibilização da população para uma maior higiene doméstica, para um maior e reforçado acompanhamento das crianças, para a explicação da origem e formas de propagação da doença.
“Para as meninas é mais difícil” diz Elisa Gomes da Voz de Quelelé no documentário, referindo-se às lides domésticas e familiares que dificultam um maior envolvimento das mulheres da Guiné-bissau. No entanto, a participação feminina nas rádios comunitárias tem sido incentivada, como mostra o website da Rede Nacional das Rádios Comunitárias (RENARC) com a criação de um núcleo de “Mulheres radialistas”.
Com o título “Rádios comunitárias: um instrumento de luta contra a pobreza e exclusão social na Guiné-Bissau” (pdf, 2010), um artigo de Adão Nhaga, anterior radialista e coordenador de várias emissoras do país, deixou também o seu apelo às mulheres para “se envolverem activamente no funcionamento interno das Rádios Comunitárias”:
As mulheres têm que utilizar as Rádios Comunitárias enquanto processos populares, educativos, livres, participativos, interactivos, mostrando a diversidade e a riqueza dos diferentes movimentos associativos de mulheres, das diversas opções e práticas de desenvolvimento, das culturas próprias das mulheres de cada etnia enquanto elementos fundamentais da cidadania guineense e não da superioridade ou inferioridade de alguma delas em relação às outras. Daí que o desafio seja o de promover o acesso das mulheres à palavra para democratizar a sociedade.
Segundo uma notícia publicada pela AngolaPress, a argumentista Lucia van den Bergh, em entrevista à Lusa na apresentação do filme no Centro de Estudos Africanos em Lisboa, disse que após o golpe de estado militar de 12 de Abril de 2012 aumentou a “auto-censura” nos programa das rádios comunitárias:
“Mas não os fez desistir e eles continuam a divulgar o que está a acontecer”, realça, contando que “a população local, que quase não tem nada, apoia com algumas pilhas”.
Mas o que fica patente com o documentário é que “a Guiné-Bissau não são só golpes de Estado, são pessoas e boas ideias”, como afirmou o realizador Andrzej Kowalski.
Confira com a visualização da Voz da População (disponível também com legendas em inglês e francês):