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Facebook russo de horrores: É uma conspiração!

Categorias: Europa Oriental e Central, Rússia, Ativismo Digital, Lei, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Migração e Imigração, Política, Protesto, RuNet Echo

No útimo fim de semana o projeto RunNet esteve agitado com a sórdida história do aspirante a chefe de cozinha e dono de restaurante sem sucesso, Alexey Kabanov, que supostamente estrangulou sua esposa, Irina Cherska, e desmembrou seu corpo numa tentativa de escapar da lei. Mal passou uma semana, o homicídio de Irina foi ofuscado por duas outras mortes — o assassinato [1] [ru] de um criminoso de grande influência da Rússia e o suicídio [2] [ru] de um refugiado político russo nos Países Baixos. Não obstante, nos dias imediatamente após a prisão de Kabanov, os internautas russos experimentaram um período raro de introspecção, generosamente salpicado com teorias da conspiração.

[3]

Kabanov é exposto participando em um “experimento investigatório” com membros da polícia, explicando como cometeu o homicídio. Captura de vídeo do YouTube. 20 de Janeiro de 2013

O RuNet aludiu anteriormente [4] [en] ao fato de que Kabanov e Cherska eram participantes ativos da blogosfera, integrados a uma rede social de membros da oposição. Alguns destes amigos e conhecidos se pronunciaram após a notícia da morte de Irina, esclarecendo sobre a família Kabanov. Mitya Gutrin, ex-colega de Alexey e Irina, escreveu um post [5] [ru] descrevendo as dificuldades financeiras deles e o hábito de Kabanov emprestar quantias enormes de dinheiro dos amigos de Irina para financiar suas tentativas frustradas de abrir cafés. O dinheiro raramente era devolvido e Kabanov aparenta, de forma geral, ter sido bem charlatão. Gutrin escreveu:

Я всегда считал, что между жуликом и убийцей основательная пропасть. Теперь я знаю, что она не так велика, как мне казалось, а может ее и нет вовсе […]

Sempre pensei que há um amplo abismo entre um impostor e um assassino. Agora sei que não é tão amplo quanto pensei, e talvez sequer exista […]

Tais descrições do caráter moral de Kabanov provavelmente serão suscitadas pela acusação, se e quando este caso for a julgamento. Ekaterina Gajski, amiga de Irina, concordou com Gutrin, alegando ainda [6] [ru] que Kabanov tinha um histórico de abusos físicos contra Irina:

Сначала он просрал ее квартиру, потом их бизнес (дважды точно), потом поссорил ее со всеми из-за долгов – он хамил кредиторам, ее друзьям, которые им ссудили денег на бизнес. Еще он явно ее бил, я в этом уверена, хотя сама Ира всегда отрицала и защищала его…

Primeiro ele sumiu com o apartamento dela, daí com os negócios do casal (duas vezes pelo menos), depois fez com que ela brigasse com todo mundo por causa dos empréstimos – era grosso com os credores, amigos dela que lhes emprestaram dinheiro para os negócios. Além disso, evidentemente batia nela, tenho certeza, apesar de Ira ter sempre negado e defendido o cara…

Tais revelações sobre pessoas que pareciam ser representantes-modelo da “classe criativa” da Rússia (termo inventado pelo sociologista Richard Florida, e posteriormente adotado pelo ideologista do Kremlin Vladislav Surkov, para descrever jovens profissionais que compõem o núcleo de protestos anti-governamentais), resultaram naturalmente em uma longa busca da parte de seus membros.

O blogueiro auto-denominado euro-socialista, Pavel Pryanikov reagiu inventando o termo “creacl [7] [ru], uma palavra-valise para “classe criativa” (o neologismo parece ter decolado, já contando com mais de 6.000 acessos no motor de busca Yandex [8]). Priyanikov publicou um artigo, fundamentado na sociologia, no qual delineou as razões para a tragédia iminente dos creacls, como exemplificado pela família Kabanov:

1)бесперспективность существования приезжих в Москве 2)свёртывание объёма интеллектуальных работ 3)отсутствие социала для креаклов-аутсайдеров.

1) falta de perspectivas para os recém-chegados a Moscow 2) redução no volume de trabalhos “intelectuais” 3) falta de bem-estar social para creacls marginalizados.

Ele referia-se ao fato de que Kabanov e Cherska, como muitos outros transferidos, não possuíam registro em Moscow e estavam alugando um apartamento. O professor de Ensino Superior de Economia, Kirill Martynov, estava na mesma página  em uma publicação ríspida [9] [ru] intitulada “O fim da classe criativa”:

[…] оказалось, что внутри уютного доброго Фейсбука, населенного любящими мужьями, на самом деле прячутся монстры. […] Что вместо высоких идеалов свободы равенства и братства нас ждут […] безденежье, […] сплетни подруг, алкоголизм и простые маленькие чувства […] И вот ты стоишь на площади с плакатом “Путин должен уйти”, а сам отключил телефон, чтобы кредиторы не могли дозвониться, думаешь про бутылку с виски, думаешь, где бы еще занять денег, а наутро изобьешь жену.

[…] verificou-se que naquele Facebook acolhedor, agradável, povoado com maridos dotados, há monstros. […] Que, em vez de ideais grandiosos de igualdade e fraternidade, enfrentamos, de […] bolsos vazios, […] amigos fofoqueiros, alcoolismo e sentimentos ordinários, egoístas […] E então você fica de pé na praça segurando um pôster “Putin tem que sair”, mas desligou seu telefone para que credores não possam encontrá-lo, está pensando sobre a garrafa de whiskey, onde mais emprestar dinheiro e, pela manhã, vai bater na esposa.

Enquanto alguns recorreram à sociologia, para outros membros da classe criativa “condenada” a longa busca resultou em uma dissonância cognitiva, que logo se transformou em paranoia. A prisão e a subsequente confissão de Kabanov deixaram essas pessoas hesitantes. Os sentimentos encontram-se exemplificados no seguinte comentário [10] [ru], afixado em um dos posts do Facebook de Kabanov:

А что, если чувака просто подставили? Согласитесь, в это легче поверить, учитывая его оппозиционную деятельность, чем в то, что он убил жену, расчленил её, начал поиски, но просто держал тело в багажнике…

E se o cara simplesmente tiver caído em uma armação? Você não concordaria, considerando o envolvimento dele com a oposição, que isto é mais fácil de acreditar do que o fato de ele ter matado e desmembrado a esposa, começado a procurá-la, mas ter mantido o corpo dela no porta-malas…

[11]

O carro que Kabanov utilizou para se desfazer do corpo. Captura de vídeo do YouTube. 20 de Janeiro de 2013

Certamente, para alguns, é mais fácil acreditar que Kabanov, um manifestante ordinário da oposição, foi alvo do Kremlin, que matou sua esposa, desmembrou-a e a colocou no porta-malas para armar contra ele, do que acreditar que ele próprio poderia ter feito isso. A vidente Elina Hoffman não pensou [12] [ru] que fosse uma conspiração do governo, mas sim local:

По моим ощущениям,его [труп] туда положили милиционеры для повышения раскрываемости.

Minha sensação é que [o corpo] foi colocado lá pela polícia, para melhorar suas estatísticas de crime.

Enquanto o blogueiro brill_poroshina demonstrou [13] [ru] que opinião não tem que ser racional:

Ну не верю я в эту историю. Не верю, не знаю, почему конкретно [my italics, A.T.], но в целом история выглядит очень нарочитой и, главное, труп вытащили аккурат накануне марша 13-го.

Eu simplesmente não acredito nessa história. Não acredito, e não sei exatamente porquê, [itálicos do autor, A.T.] mas no geral a história parece muito falsa, e, o mais importante, o corpo foi encontrado exatamente antes da marcha do dia 13.

Outros fizeram a mesma conexão com a iminente Marcha Contra os Vilões [14] [en], insinuando que o governo poderia estar tentando desacreditar a oposição. O blogueiro Andrei Cherepanov, da rádio Echo Moskvy pensou [15] [ru] que a polícia poderia ter “persuadido” a confissão de Kabanov. Ele também tinha certeza de que os meios do comunicação do estado usariam a tragédia para associar Kabanov ao movimento. O usuário do LifeJournal bartang [16] [ru] apontou as similaridades entre a história de Kabanov e as acusações de abuso infantil contra o blogueiro de oposição, Rustem Adagamov (drugoi):

Не верю, короче, что это он. Слишком вовремя, перед маршем протеста, нашли тело. […] Я предполагал, что протест будут ломать, но такого даже представить не мог. История с другим – разминка.

Resumindo, eu não acredito que seja ele. O corpo foi encontrado antes da marcha de protesto, o que é demasiado oportuno. […] Pensei que eles tentariam interromper o protesto, mas não poderia ter imaginado isso. A história com drugoi foi um aquecimento.

Ou seja, “ninguém está salvo! [17]” [ru]

Embora seja verdade que os meios de comunicação do estado e os blogueiros pró-Kremlin tenham explorado as visões políticas de Kabanov com o fim de ridicularizar a oposição, a ideia de que Kabanov foi incriminado pelo homicídio de sua esposa por essa razão é fantástica. Crítico do governo assumido e blogueiro nacionalista, Egor Prosvirnin tem sustentado tais teorias [18] [ru] com a inabilidade do movimento protestante em questionar seus próprios líderes:

[…] белоленточных фейсбук-граждан можно ебать в глазницы, а они в ответ будут лишь улыбаться и говорить, что все это клевета с целью опорочить хорошего человека. Если даже разделка трупа жены неспособна подорвать веру фейсбук-общественности в своего товарища, то что уж говорить о менее ярких случаях […]

[…] pode f***r os usuários do facebook que apoiam a Campanha Fita Branca [19], e em retorno eles apenas sorrirão e dirão que é tudo calúnia, com o fim de desacreditar uma pessoa bacana. Quando mesmo o desmembramento do corpo de uma esposa é incapaz de abalar a fé da comunidade do facebook e de seus companheiros, então por que ainda conversar sobre casos menos impressionantes […]

À medida que a situação política na Rússia se torna mais amarga, tais acusações, recriminações e teorias da conspiração de ambos os lados tendem a se tornar a regra — principalmente no ambiente impressionável do RuNet.

Parte I: Facebook russo dos horrores: A trilha do assassino [20]

Parte II: Russian Facebook of Horrors: From Tragedy to Humor [4] [en]