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Espanha: Concessão de indulto a policiais condenados por tortura

Categorias: Europa Ocidental, Espanha, Direitos Humanos, Lei, Mídia Cidadã, Primeira Mão

No dia 27 de julho de 2006, o cidadão romeno Lucian Paduraru [1] [es] e sua esposa gestante deixavam sua casa quando cinco homens os abordaram e o atacaram, agredindo-o continuamente. Os cinco homens eram membros da força policial catalã Mossos d’Esquadra [2], porém não se identificaram ao casal. Os oficiais haviam confundido Paduraru com um assaltante perigoso bem conhecido.

O sr. Paduraru foi preso e levado à delegacia de polícia, em Les Corts, onde as agressões físicas não só continuaram, mas se tornaram pior, com a inclusão de ameaças, insultos e ainda com a inserção do cano de uma arma em sua boca. As agressões pararam somente quando um dos mossos notou que câmeras de segurança monitoravam a sala. A tragédia se tornou ainda mais grave com a constatação de Paduraru ser hemofílico. Este caso foi usado como um dos exemplos do relatório Spain: Adding insult to injury [3] [en] [tradução equivalente a ‘Espanha: colocando mais lenha na fogueira’], da Anistia Internacional, sobre violência policial na Espanha.

Las cámaras de la comisaría de Les Corts captan a unos 'mossos' golpeando a un detenido. Foto del blog «Chorizos ibéricos» [4]

Câmeras flagram os mossos agredindo o detento na delegacia de polícia em Les Corts. Foto do blog «Chorizos ibéricos»

Os cinco mossos enfrentaram acusações de tortura, lesões corporais e detenção ilegal, tendo sido julgados no principal tribunal de Barcelona [5] [es]. Três oficiais foram sentenciados a seis anos e sete meses cada, outro foi sentenciado a dois anos e três meses, e o quinto recebeu somente uma multa por abuso. Em um recurso interposto no Supremo Tribunal, as sentenças foram reduzidas e foi concedida uma suspensão enquanto se aguardava a decisão sobre o perdão judicial requerido pelos mossos.

Em fevereiro de 2012, o governo concedeu o primeiro indulto, alegando [6] que “investigações policiais subsequentes” demonstraram “informações novas e valiosas em relação aos fatos dos caso.” Também foram levadas em consideração as fichas pessoais dos oficicias junto ao departamento, assim como “o apoio crescente e geral ao indulto.” O indulto, que mais adiante reduziu os tempos de prisão para dois anos, acoplado à inexistência de crimes anteriores, isentou os oficiais de retornarem à prisão. Além disso, a proibição deles na função pública foi substituída por uma suspensão de dois anos.

 

Apesar disso, o Tribunal expediu um mandado incomum para os oficiais cumprirem seu tempo de prisão, mencionando a indignação social e a ameaça que os oficiais demonstravam à sociedade. Em resposta, os mossos apresentaram sua segunda apelação.

Ainda há poucos dias, o governo espanhol, ignorando a opinião pública, concedeu o requerido na segunda apelação dos oficiais, comutando a pena de prisão deles por uma simples multa de 7.200 euros (cerca de US$ 9.350 dólares), a ser paga em “parcelas” de €10, durante dois anos.

Este segundo indulto enfureceu o público, que, de forma geral, interpretou a ação do governo como uma clara concordância com a impunidade e a brutalidade que flagrantemente violam os direitos humanos fundamentais. No Twitter, as hashtags #indulto [7] e #justiciadeespaña [8] [justiça espanhola] se tornaram os tópicos do momento, na tarde em que foi anunciada a decisão. Abraham Escobar of #14N [9] e Gloria Marcos  [10]compartilharam respectivas indignações:

@abraham_escobar [11]: O indulto aos mossos é uma vergonha. Esse sistema político está falido. A injustiça é legalizada e a impunidade recompensada.

@gloriamarcosmar [12]: Gano Ping livre, concessão de indulto a torturadores e o #PP [13] [Partido Político] promovendo a brutalidade policial. Em que país vivemos? # [14]JusticiaDeEspaña [14]

Ricardo Sixto [15] criticou as recentes iniciativas do Ministério da Justiça:

@Rsixtoiglesias [16]: Espanha: concede indulto a torturadores e usa multas como meios de justiça. Já não existe um Estado de Direito. http://www.publico.es/espana/446355/ [17]

 

Esse indulto clareia quanto à realidade do que vem acontecendo há anos. Os espanhóis estão começando a perceber que o indulto, um mecanismo destinado a humanizar a justiça, tem sido amplamente utilizado pelo governo [18] para anular sentenças de criminosos em estreita proximidade com o poder. Ignacio Escobar expõe tal questão em seu artigo “O indulto: um abuso diário do poder [19]” [es]:

[…] somos um dos países ocidentais cujo governo mais abusa dessa prerrogativa arbitrária. Desde 1977 concedemos 17.620 indultos, de acordo com o BOE [Boletim Oficial do Estado [20]]. Dentre os que receberam indulto estão os melhores de cada casa: os líderes do golpe de 23-F [golpe de 23 de fevereiro de 1981 [21]], os terroristas do GAL [Grupos Antiterroristas de Libertação [22]], políticos corruptos, juízes pervertidos, grandes empresas, banqueiros fraudulentos, traficantes de drogas … Isto em uma média de 480 por ano.

Zapatero concedeu 3.226 durante seus dois anos, enquanto Aznar – recordista nacional – quase dobrou esse número, com 5.916 indultos. Em comparação, George W. Bush concedeu apenas 200 indultos em oito anos, nos Estados Unidos, um país sete vezes maior que a Espanha […]

Cerca de 200 juízes se uniram para assinar uma declaração de dissidência [23] [es] contra o indulto dos mossos. A seguir encontram-se trechos da imprensa:

Indulto supõe um ato de violação da dignidadade humana, cuja responsabilidade em processar atos de tortura recai sobre o Estado, principalmente quando realizados por oficiais a seu serviço […]

A tortura é uma das piores formas possíveis de violação da dignidade humana. Essa dignidade é o fundamento de uma ordem constitucional. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou a Espanha por não investigar esses atos. […] Quando a Justiça atua, investiga e condena, o Governo perdoa. Torna-se um desafio explicar tal comportamento perante o Tribunal

[…]

A decisão do governo é desapropriada para um sistema democrático de direito, ilegítima e eticamente insustentável.

O ministro da justiça, Alberto Ruiz Gallardón, defendeu [24] [es] a decisão do governo:

Alberto Ruiz Gallardón, Ministro de Justicia español. Captura de un vídeo de YouTube. [24]

Alberto Ruiz Gallardón, Ministro da Justicça da Espanha. Imagem de um vídeo do YouTube.

[…]o que não pode prevalecer é a crença de que outros poderes podem assumir determinadas prerrogativas que não pertencem a eles, simplesmente porque a constituição os concede ao Estado da Espanha; o indulto não é um direito do sistema judiciário mas uma prerrogativa do poder executivo.

Todavia, ainda há esperança de que esse perdão servirá de algo, como Ixaiac [25] descreve em um artigo do site de notícias Huffington Post [26] [es]:

Ontem o SUP [Sindicato Unificado da Polícia [27]], hoje 200 juízes. Talves alguma coisa esteja mudando, contudo, para a maioria a mudança vem tarde. Tomara que mais e mais olhos estejam se abrindo no tocante ao constante abuso de poder. Não vamos perder tempo em restituir a justiça à nossa sociedade.