Espanha: Concessão de indulto a policiais condenados por tortura

No dia 27 de julho de 2006, o cidadão romeno Lucian Paduraru [es] e sua esposa gestante deixavam sua casa quando cinco homens os abordaram e o atacaram, agredindo-o continuamente. Os cinco homens eram membros da força policial catalã Mossos d’Esquadra, porém não se identificaram ao casal. Os oficiais haviam confundido Paduraru com um assaltante perigoso bem conhecido.

O sr. Paduraru foi preso e levado à delegacia de polícia, em Les Corts, onde as agressões físicas não só continuaram, mas se tornaram pior, com a inclusão de ameaças, insultos e ainda com a inserção do cano de uma arma em sua boca. As agressões pararam somente quando um dos mossos notou que câmeras de segurança monitoravam a sala. A tragédia se tornou ainda mais grave com a constatação de Paduraru ser hemofílico. Este caso foi usado como um dos exemplos do relatório Spain: Adding insult to injury [en] [tradução equivalente a ‘Espanha: colocando mais lenha na fogueira’], da Anistia Internacional, sobre violência policial na Espanha.

Las cámaras de la comisaría de Les Corts captan a unos 'mossos' golpeando a un detenido. Foto del blog «Chorizos ibéricos»

Câmeras flagram os mossos agredindo o detento na delegacia de polícia em Les Corts. Foto do blog «Chorizos ibéricos»

Os cinco mossos enfrentaram acusações de tortura, lesões corporais e detenção ilegal, tendo sido julgados no principal tribunal de Barcelona [es]. Três oficiais foram sentenciados a seis anos e sete meses cada, outro foi sentenciado a dois anos e três meses, e o quinto recebeu somente uma multa por abuso. Em um recurso interposto no Supremo Tribunal, as sentenças foram reduzidas e foi concedida uma suspensão enquanto se aguardava a decisão sobre o perdão judicial requerido pelos mossos.

Em fevereiro de 2012, o governo concedeu o primeiro indulto, alegando que “investigações policiais subsequentes” demonstraram “informações novas e valiosas em relação aos fatos dos caso.” Também foram levadas em consideração as fichas pessoais dos oficicias junto ao departamento, assim como “o apoio crescente e geral ao indulto.” O indulto, que mais adiante reduziu os tempos de prisão para dois anos, acoplado à inexistência de crimes anteriores, isentou os oficiais de retornarem à prisão. Além disso, a proibição deles na função pública foi substituída por uma suspensão de dois anos.

 

Apesar disso, o Tribunal expediu um mandado incomum para os oficiais cumprirem seu tempo de prisão, mencionando a indignação social e a ameaça que os oficiais demonstravam à sociedade. Em resposta, os mossos apresentaram sua segunda apelação.

Ainda há poucos dias, o governo espanhol, ignorando a opinião pública, concedeu o requerido na segunda apelação dos oficiais, comutando a pena de prisão deles por uma simples multa de 7.200 euros (cerca de US$ 9.350 dólares), a ser paga em “parcelas” de €10, durante dois anos.

Este segundo indulto enfureceu o público, que, de forma geral, interpretou a ação do governo como uma clara concordância com a impunidade e a brutalidade que flagrantemente violam os direitos humanos fundamentais. No Twitter, as hashtags #indulto e #justiciadeespaña [justiça espanhola] se tornaram os tópicos do momento, na tarde em que foi anunciada a decisão. Abraham Escobar of #14N e Gloria Marcos compartilharam respectivas indignações:

@abraham_escobar: O indulto aos mossos é uma vergonha. Esse sistema político está falido. A injustiça é legalizada e a impunidade recompensada.

@gloriamarcosmar: Gano Ping livre, concessão de indulto a torturadores e o #PP [Partido Político] promovendo a brutalidade policial. Em que país vivemos? #JusticiaDeEspaña

Ricardo Sixto criticou as recentes iniciativas do Ministério da Justiça:

@Rsixtoiglesias: Espanha: concede indulto a torturadores e usa multas como meios de justiça. Já não existe um Estado de Direito. http://www.publico.es/espana/446355/

 

Esse indulto clareia quanto à realidade do que vem acontecendo há anos. Os espanhóis estão começando a perceber que o indulto, um mecanismo destinado a humanizar a justiça, tem sido amplamente utilizado pelo governo para anular sentenças de criminosos em estreita proximidade com o poder. Ignacio Escobar expõe tal questão em seu artigo “O indulto: um abuso diário do poder” [es]:

[…] somos um dos países ocidentais cujo governo mais abusa dessa prerrogativa arbitrária. Desde 1977 concedemos 17.620 indultos, de acordo com o BOE [Boletim Oficial do Estado]. Dentre os que receberam indulto estão os melhores de cada casa: os líderes do golpe de 23-F [golpe de 23 de fevereiro de 1981], os terroristas do GAL [Grupos Antiterroristas de Libertação], políticos corruptos, juízes pervertidos, grandes empresas, banqueiros fraudulentos, traficantes de drogas … Isto em uma média de 480 por ano.

Zapatero concedeu 3.226 durante seus dois anos, enquanto Aznar – recordista nacional – quase dobrou esse número, com 5.916 indultos. Em comparação, George W. Bush concedeu apenas 200 indultos em oito anos, nos Estados Unidos, um país sete vezes maior que a Espanha […]

Cerca de 200 juízes se uniram para assinar uma declaração de dissidência [es] contra o indulto dos mossos. A seguir encontram-se trechos da imprensa:

Indulto supõe um ato de violação da dignidadade humana, cuja responsabilidade em processar atos de tortura recai sobre o Estado, principalmente quando realizados por oficiais a seu serviço […]

A tortura é uma das piores formas possíveis de violação da dignidade humana. Essa dignidade é o fundamento de uma ordem constitucional. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos condenou a Espanha por não investigar esses atos. […] Quando a Justiça atua, investiga e condena, o Governo perdoa. Torna-se um desafio explicar tal comportamento perante o Tribunal

[…]

A decisão do governo é desapropriada para um sistema democrático de direito, ilegítima e eticamente insustentável.

O ministro da justiça, Alberto Ruiz Gallardón, defendeu [es] a decisão do governo:

Alberto Ruiz Gallardón, Ministro de Justicia español. Captura de un vídeo de YouTube.

Alberto Ruiz Gallardón, Ministro da Justicça da Espanha. Imagem de um vídeo do YouTube.

[…]o que não pode prevalecer é a crença de que outros poderes podem assumir determinadas prerrogativas que não pertencem a eles, simplesmente porque a constituição os concede ao Estado da Espanha; o indulto não é um direito do sistema judiciário mas uma prerrogativa do poder executivo.

Todavia, ainda há esperança de que esse perdão servirá de algo, como Ixaiac descreve em um artigo do site de notícias Huffington Post [es]:

Ontem o SUP [Sindicato Unificado da Polícia], hoje 200 juízes. Talves alguma coisa esteja mudando, contudo, para a maioria a mudança vem tarde. Tomara que mais e mais olhos estejam se abrindo no tocante ao constante abuso de poder. Não vamos perder tempo em restituir a justiça à nossa sociedade.

 

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