O processo de implementação da Televisão Digital Terrestre (TDT) em Portugal, que veio substituir a forma tradicional de transmissão do sinal de televisão desde Abril de 2012, trouxe inúmeros problemas à população que, em muitos casos, se viu privada do acesso aos quatro canais generalistas gratuitos.
Uma tese de doutoramento sobre o processo de implementação da TDT, apresentada no dia 30 de Outubro de 2012 na Universidade do Minho, indica que a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) beneficiou a empresa privada Portugal Telecom (PT) no concurso da exploração da TDT e não actuou em alguns casos de exploração da população.
O investigador e autor da tese, Sergio Denicoli, antigo jornalista da Rede Globo, publicou no seu blog Televisão Digital em Portugal, um curto artigo em que resume o seu trabalho de investigação:
Analisei detalhadamente mais de 70 documentos, li centenas de livros e artigos científicos, entrevistei especialistas e, por fim, pude constatar que a TDT portuguesa parece ter sido influenciada pelo que os teóricos chamam de “captura regulatória”. Ou seja, há indícios de que a ANACOM, órgão regulador das comunicações, teria trabalhado de forma a favorecer a Portugal Telecom, que foi muito beneficiada com a implementação do sistema televisivo digital.
No mesmo artigo, Sergio Denicoli defende que:
É preciso passar Portugal a limpo. O país merece ter à frente das suas instituições pessoas íntegras que trabalhem em favor da população e não o contrário.
Acredito que cumpri o meu papel enquanto cidadão, aliás, enquanto ser humano. Não podemos ficar calados quando estamos do lado da verdade e vemos pessoas simples, humildes, idosos, enfim, pessoas que necessitam da nossa atenção, serem usadas como meios de garantir lucro para grupos poderosos.
Em resposta, a PT e a ANACOM anunciaram levar o investigador a tribunal, por difamação. Esta notícia gerou uma onda de indignação na população que se materializou na criação de uma página de apoio a Sergio Denicoli, no Facebook.
A Universidade do Minho, a instituição onde a tese foi defendida, desmarcou-se da investigação, alegando que os trabalhos são da exclusiva responsabilidade dos investigadores. A notícia, veiculada pelo jornal Público, gerou uma segunda vaga de indignação e fez com que um grupo de investigadores criasse uma petição pela Liberdade de Investigação Académica que conta já com mais de 5 mil signatários. Os signatários defendem, sobretudo, o não condicionamento da investigação académica.
Os abaixo-assinados entendem ser seu dever afirmar que seria da maior gravidade que os académicos fossem condicionados ou amordaçados na sua liberdade de investigação, como se tivessem de ser avaliados por critérios outros que não os científicos.
A tese defendida por Sergio Denicoli veio fortalecer a indignação e revolta da população contra o processo de implementação da TDT em Portugal que, ao contrário do que se passa em outros países, não confirma as vantagens apresentadas, principalmente no que diz respeito à melhoria da qualidade de imagem e som. Para receberem o novo sinal digital, os utilizadores que não possuíssem televisões equipadas com um descodificador digital foram obrigados a comprar um descodificador para poderem receber o novo sinal digital. Mantêm-se os mesmos quatro canais generalistas, em muitos casos recebidos em piores condições do que quando o sinal era analógico.
Um bom exemplo do mau funcionamento da TDT em algumas zonas do país é partilhado com ironia no blog Aventar:
Há dias estive pelo Baixo Mondego onde vi in loco a nova televisão digital. Uma miséria. Com a TDT, todos nas aldeias para os lados do Pranto se queixam do mesmo: a imagem fica parada aos quadradinhos. Ainda bem que com a TDT, como diziam na publicidade, o som e a imagem ficam com maior qualidade. E posso confirmar. De cada vez que esses quadrados aparecem, posso comprovar que têm as arestas perfeitamente definidas. E a falta de som decorre maravilhosamente ausente de interferências. Viva o progresso.
Num artigo [pdf] publicado no dia 5 de Novembro de 2012 num jornal gratuito, Luis António Santos, um professor universitário, apresenta o caso de uma senhora de idade que pura e simplesmente ficou sem televisão:
Na pequena localidade onde costumo passar parte dos meus tempos de descanso, numa zona interior do distrito de Braga, há uma senhora de idade que, nos últimos meses, adotou uma nova rotina de vida. Depois de jantar, todas as noites, a Srª Augusta, lá arruma a cozinha, veste um agasalho, fecha a porta e percorre a pé umas quantas dezenas de metros a caminho da casa da vizinha para ver televisão.
Já em Maio de 2012, um artigo no blog TDT em Portugal alertava para algumas situações de exclusão e para a incoerência do processo de implementação da TDT.
A forma como a Televisão Digital Terrestre foi introduzida em Portugal não permitia esperar outro resultado. Os cidadãos em geral e as populações mais desfavorecidas em particular foram altamente lesados com a migração para a TDT. O processo de migração português foi concebido e implementado com quase total desrespeito pelos cidadãos, ignorando por completo as experiências de outros países, as recomendações de especialistas e as graves dificuldades económicas da maioria da população.
Em Junho de 2012, um programa da rádio pública deu a conhecer alguns casos bastantes graves de pessoas que foram aconselhadas pela PT a comprar o descodificador que não funcionou, acabando por comprar o conjunto de recepção por satélite.
Graças à polémica gerada pela tese de doutoramento de Sergio Denicoli, a população parece estar mais atenta a todo este processo de implementação da TDT e unida no sentido de procurar e exigir a melhoria de um serviço que se quer gratuito e universal.
1 comentário
Prezado Hugo Ferro, obrigado por abordar o assunto e parabéns pela imparcialidade e clareza do texto. É muito importante ver a TDT sendo divulgada através do Global Voices. Um cordial abraço.