Sob mais uma ameaça de despejo das suas terras, a comunidade indígena Guarani-Kaiowá de Pyelito Kue / Mbarakay, no município de Iguatemi, Mato Grosso do Sul (MS), lançou no mês de Outubro de 2012 uma carta que tem ecoado tanto na imprensa como na web, como um grito de resistência quando a morte parece ser o destino de todo um povo:
A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas?? Para qual Justiça do Brasil?? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. (…)
De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários os nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali estão o cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser morto e enterrado junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao Governo e Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui.
Profundamente afectados pela perda quase total da sua terra ao longo do último século, os Guaraní Kaiowá, o segundo povo indígena mais numeroso do Brasil, com uma população de 43 mil, são alvo constante de ataques e vítimas de uma alarmante onda de suicídios. As terras do estado são das mais produtivas no Brasil em agropecuários e biocombustíveis.
A carta terá sido suscitada pela expedição, a 29 de Setembro, de um despacho da Justiça Federal de Navirai do MS (processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006) que determina a reintegração de posse das terras ancestrais da comunidade de Pyelito Kue / Mbarakay.
“Aqueles que devem viver”
“Não podemos calar ou ficar inertes diante desse clamor da comunidade Kaiowá Guarani”, afirmaEgon Heck, Assessor do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), aludindo à memória histórica de “Y Juca Pirama – O Índio aquele que deve morrer”, livreto publicado em 1973 por bispos e missionários da Amazônia:
Diante do decreto de morte e extermínio surge a obstinada determinação dos povos de viver ou morrer coletivamente, conforme suas crenças, esperanças ou desespero. Esse grito certamente fará parte do manifesto “os povos indígenas, aqueles que devem viver”, apesar e contra os decretos de extermínio.
(…) Não se trata de um fato isolado, mas de excepcional gravidade, diante de uma decisão de morte coletiva. Continuaremos sendo desafiados por fatos semelhantes, caso não se tome medidas urgentes de solução da questão da demarcação das terras indígenas desse povo.
A jornalista Eliane Brum, em reação à carta, escreveu na sua página da revista Época sobre a história de luta dos Guarani Kaiowá e de como uma “parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem” no Brasil:
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Felipe Milanez, jornalista, realizador do documentário Toxic: Amazon, e criador do blog em homenagem à Luta Guarani, tem feito uso prolífico das redes sociais para alertar sobre a causa deste povo. Recentemente ele publicou um vídeo com depoimento de Elpídio Pires, liderança indígena, sobre como é viver sob ameaças de morte:
No Twitter (@felipedjeguaka) ele denuncia ligações entre governantes locais e “latifundiarios, pistolagem e crime organizado na Amazônia”, apontando nomes tais como:
O prefeito de Paranhos levou pra cadeia Elpídio Pires. E o de Aral Moreira é um dos acusados na morte do Nisio Gomes Guarani. Prefeitos!
Já em abril ele havia publicado um outro vídeo, sobre a morte do cacique Nísio Gomes, num ataque de pistoleiros em novembro de 2011:
Onda de protestos
Nas redes sociais multiplicam-se as iniciativas solidárias, como a página de Facebook Solidariedade ao Povo Guarani-Kaiowá ou o blog do Comitê Internacional com o mesmo nome. Tem circulado também um vídeo realizado por Tekoa Virtual Guarani, com mensagens dirigidas à Presidenta Dilma Rousseff com o intuito de sensibilizá-la para a violência de que este povo é alvo.
No Facebook um grupo organizou uma performance de “suicídio colectivo simbólico” online, que assenta na desativação das contas do Facebook colectivamente no dia 2 de Novembro, num evento a que deram o nome de “facebookcídio”. Uma petição Avaaz, já com 24.290 assinaturas, apela: “Vamos impedir o suicídio coletivo dos índios Guarani Kaiowá”. Uma nota do CIMI no entanto critica a forma irresponsável como a questão está a ser exposta à luz da interpretação de um “suposto suicídio” dos Guarani Kaiowá, repercutida tanto por cidadãos mobilizados como pela imprensa, quando, na verdade a carta fala em morte colectiva no “contexto da luta pela terra”.
Um outro abaixo-assinado Avaaz, que já reuniu mais de 172.000 assinaturas, reforça a mensagem transmitida na carta e lança o apelo:
Exija conosco cobertura da mídia sobre o caso e ação urgente do governo DILMA e do governador ANDRÉ PUCCINELLI, para que impeçam tais matanças e junto com elas a extinção desse povo.
No dia 19 de Outubro decorreu em Brasília um ato público, convocado pelo Cimi, Conselho Federal de Psicologia (CFP), Plataforma Dhesca e Justiça Global em frente ao Congresso Nacional. Egon Heck escreveu sobre a mobilização e finaliza:
Enquanto isso, as comunidades nas retomadas, nos acampamentos, nas aldeias, organizam a esperança, enfrentam os poderosos e lutam com as forças que lhes restam contra as políticas de morte e genocídio.
3 comentários
O video Salve Dilma também está disponível no YouTube desde o dia 18/10 e com o recurso de legendas para o inglês. http://youtu.be/t_eGPjjh1ao
Realmente uma pena saber que por interesses políticos e econômicos o ‘nosso’ País é capaz de fazer atitudes como essa.
A cultura indígena faz parte da história desse país e seus ancestrais sao os nossos ancestrais.
Infelizmente a história se repete.
A mobilização foi um sucesso, uma
vez que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo, suspendeu
operação de retirada dos índios Guarani-Kaiowás do acampamento
Pyelito Kue, atendendo a pedido da Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
Os 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças da tribo
Guarani-Kaiowá poderão ficar na fazenda Cambará no Iguatemi-MS. Confinados em uma
área de 2 hectares (equivalente a dois campos de futebol).
É só uma solução temporária. A decisão
deverá vigorar até a identificação e demarcação final do território
indígena pela FUNAI. A solução também é precária, uma vez que relações com
o proprietário continuam tensas e perigosas. Na quarta-feira 24 de outubro, uma indígena
de Pyelito Kue foi abusada sexualmente por oito homens em uma fazenda, conforme
denunciaram os indígenas.
O
procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida disse: “a mobilização
das redes sociais foi definitiva para alcançar esse resultado. Provocou uma
reação raramente vista por parte do governo quando se trata de direitos
indígenas”.
Mas, para os lideres, a situação
jurídica do local segue em impasse.
O Ministério Público Federal,
instituição federal independente com intenção de representar os interesses dos
cidadãos e das comunidades em processo penal (o quarto poder do Brasil) disse:
“afastar a discussão da ocupação tradicional da área em litígio equivale a
perpetuar flagrante injustiça cometida contra os indígenas em três fases
distintas e sucessivas no tempo. Uma quando se lhes usurpam as terras; outra
quando o Estado não providencia, ou demora fazê-lo, ou faz de forma deficiente
a revisão dos limites de sua área e quando o Estado-Juiz lhes impede de invocar
e demonstrar seu direito ancestral sobre as terras, valendo-se justamente da
inércia do próprio Estado”.
Vale
lembrar que o número de usuários do internet, incluindo Facebook, que substituíram
seus nomes pelo nome Guarani-Kaiowá foi enorme. Isso tocou os índios, que
mandaram agradecimentos através do grupo do Facebook “Suicide collectif” Facebook soutien au Guarani-kaiowá (tradução
do francês):
“Nós, Guarani Kaiowá e os sobreviventes que
realmente querem sobreviver, desejamos com esta mensagem simples expressar publicamente
nossa imensa gratidão a todas e todos que acrescentaram Guarani-Kaiowá a seus
nomes.
Como todos sabem, os Guarani e Kaiowá, sozinhos, podem ser exterminados, mas
estamos confiantes de que, com a real solidariedade humana e o apoio de todos
vocês, podemos ser salvos de várias formas de violência contra nossas vidas e,
especialmente, evitar a extinção do nosso povo.
Graças a esse seu gesto de amor pela nossa vida, sentimos um pouco de paz e
esperança em uma verdadeira justiça. Entendemos que há cidadãs e cidadãos
movidos por um genuíno amor ao próximo, que têm sede de justiça e exigem esta
justiça. Não temos palavras para agradecer a todos. Só dizemos JAVY’A PORÃ, a paz esteja em seus corações .
Muito obrigados.”