Este post faz parte da cobertura especial Europa em Crise
Logo após o anúncio do modelo de privatização da televisão pública portuguesa (RTP), feito pelo conselheiro do governo na área das privatizações, António Borges, numa entrevista concedida à TVI, começaram a surgir as primeiras críticas ao modelo anunciado.
No Twiter, o actor Nuno Lopes, foi um dos primeiros a mostrar a sua indignação:
Portugal vai ser o único país da Europa sem um serviço público de rádio e televisão. Hoje acordei com vergonha de ser Português.
Foi criada uma Petição Pública e uma página, na rede social Facebook (com 18.973 “likes” no momento de publicação deste artigo), contra o fim da RTP2, o segundo canal da televisão pública que oferece uma programação mais diversificada e que, de acordo com Borges, vai deixar de existir.
Foi também criado um evento que apela para que no dia 29 de Agosto de 2012, os televisores permaneçam ligados no segundo canal da estação pública de forma a torná-lo líder de audiências nesse dia (e que conta com cerca de 9.281 intenções de participação no momento de publicação deste artigo).
Apesar de o plano apresentado por António Borges não ser um anúncio oficial do governo, foi também já convocado um protesto contra o fim da RTP2 e contra a concessão dos restantes canais da televisão pública a operadores privados, marcado para o dia 2 de Setembro.
O vice-presidente da Entidade Reguladora para a Comunicação Social, Arons de Carvalho, apresentou no site Clique, um conjunto de dez argumentos contra a privatização da RTP, defendendo que a concessão a privados é inconstitucional:
O serviço público não pode ser exercido por empresas cujo capital seja total ou maioritariamente privado, mesmo que através de uma concessão. No seu artigo 38.º, nºs 5 e 6, a Constituição prevê a existência de um sector público da comunicação social. Acresce que no artigo 82º, n.º 2 se estipula que “o sector público é constituído pelos meios de produção cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou a outras entidades públicas”, o que torna inconstitucional a sua concessão a entidades privadas.”
Na blogosfera, a voz mais activa contra a privatização da RTP tem sido a da investigadora e presidente do Centro de investigação Media e Jornalismo (CIMJ), Estrela Serrano, que no blog Vai e Vem tem apresentado alguns argumentos que devem ser tidos em conta. No primeiro artigo, publicado a 25 de Agosto de 2012, a investigadora apresenta alguns dados curiosos sobre “o que a RTP2 representa em termos de diversidade e complementaridade”, indicando por exemplo que os seus custos operacionais por habitante apresentam os segundos mais baixos na Europa.
Num outro artigo, publicado a 26 de Agosto de 2012, Estrela Serrano recorda que “o serviço público tem regras” e apresenta alguns dos seus pilares fundamentais:
a) ser detido por uma empresa de capitais públicos; b) ser independente do poder político e do poder económico; c) ser total ou parcialmente financiado pelos cidadãos aos quais se destina, mediante o pagamento de uma taxa (garantia dessa independência); d) ser dotado de um órgão onde têm assento representantes dos cidadãos escolhidos pelos diversos sectores da sociedade – Assembleia ou Conselho – com funções de acompanhamento, supervisão, emissão de pareceres sobre planos de actividades e orçamentos, contratos de concessão e relatórios de actividades e contas.
Com o anúncio de António Borges, parece ter ganho força o Manifesto Contra a Privatização da RTP promovido, entre outros, pelo realizador António Pedro Vasconcelos, o presidente da Sociedade Portuguesa de Autores, José Jorge Letria e o bispo Januário Torgal Ferreira, publicado no jornal Expresso do dia 7 de Julho de 2012 e reproduzido, na íntegra, por Joana Lopes no blog Entre as Brumas da Memória:
os signatários apelam ao bom senso dos partidos do governo e da oposição para que travem uma medida que carece de clareza e de racionalidade e que não pode em caso nenhum ser enquadrada no plano de privatizações, até porque a sua dimensão financeira seria despicienda e totalmente desproporcionada relativamente aos efeitos brutais sobre a indústria dos média e a qualidade e a isenção da informação, da formação e do entretenimento a que os portugueses têm direito.
Na sua página pessoal do Facebook, Maria João Fialho Gouveia, filha de duas figuras históricas da RTP — Maria Helena Varela Santos, que a 7 de Março de 1957 abriu a primeira emissão regular da RTP, e José Fialho Gouveia, que no dia 25 de Abril de 1974 leu o comunicado do Movimento das Forças Armadas que proclamou a libertação do país do regime ditatorial — resume o sentimento comum àqueles que se opõe à privatização da RTP:
De ora em diante a televisão em Portugal viverá somente para o lucro, seguindo uma espécie de doutrina do neoliberalismo mediático, reflectindo a ideologia política que hoje rege os nossos destinos. Vence o capital; perde qualidade; perde o país.
Não estando ainda completo e não tendo ainda um modelo oficialmente definido, o processo de privatização da RTP parece ser uma tarefa muito complicada para o ministério tutelado por Miguel Relvas, muito fragilizado na opinião pública devido às recentes polémicas relacionadas com a forma como conseguiu a sua licenciatura em apenas um ano, e com o alegado envolvimento num caso de pressão a uma jornalista do jornal Público.
Este post faz parte da cobertura especial Europa em Crise
1 comentário
“Serviço Público” tornou-se uma expressão equívoca e há muito tempo. Para o bom velho Duguit essa era expressão a designar uma administração pública longe de qualquer metafísica. “Estado” era ideia demasiado carregada para a instrumentalidade necessária. “Estado”,aliás, não é a mesma coisa na Suiça, ou na América do Norte, em Inglaterra, em França ou em Espanha. Há povos – e populações – que viveram e vivem o Estado numa dimensão imediatamente contratual. Os ingleses contrataram Reis. Os cidadãos da Confederação Helvética contrataram entre si um Estado Confederal. Os Americanos do (sub) Norte fizeram coisa parecida. Mas os Europeus continentais viveram a metafísica do Rei escolhido por Deus que veio impregnar não poucas repúblicas através da “pessoa moral” que o Estado haveria de ser a não raros olhos. Nem o lúcido sarcasmo de Duguit salvou fosse o que fosse. Serviço Público torna-se agora e aqui a designação de uma tarefa concreta do Estado. Mas de qual Estado? o Estado-administração? O Estado na unidade da sua representação política que assim seria o conjunto das funções subordinadas à expressão da vontade soberana expressa nas urnas? Ao resultado do debate não é indiferente a adopção dos pressupostos jus filosóficos. Podem os titulares contratados sub-contratar?… Depende do contrato, não é? Podem os mandatários sub-estabelecer? Em princípio sim, a menos que haja alguma coisa em contrário. E, nem sequer por acaso, há disposições em contrário. Na Constituição por fixação expressa de obrigação clara. E nos pressupostos do sistema, porque não pode alterar-se nem o programa eleitoral que o soberano sufragou, nem o programa de governo votado em assembleia. Qualquer desenlace em contrário é nulo. E isto pode não ser nada simples em concreto (na capacidade material de transgressão do executivo, em concreto verificável). Mas no plano geral é claríssimo, isto. E a condução de processo contra direito está penalmente prevista, embora isso se note pouco, ou nada. Mas tal previsão penal está positivada e uma alteração política da correlação de forças pode tornar tal disposição operante a qualquer momento.