Num país que tem vivido sob instabilidade política constante, como pode a sociedade civil mobilizar-se para impedir novos golpes de estado e construir a democracia participativa a partir das suas comunidades? Possíveis caminhos foram apontados por um grupo de 70 jovens num encontro promovido pelo Movimento Ação Cidadã em Cacheu, na Guiné-Bissau, em finais de Julho, no qual se debateu o golpe de estado de 12 Abril de 2012.
O blog Ação Cidadã, criado pelo Movimento em Maio deste ano em resposta à “azáfama do contexto político e o histórico resultante das vicissitudes que o país conheceu, principalmente, nas duas últimas décadas”, regista as conclusões do encontro, das quais constam questões como a reforma dos poderes instituídos (Forças Armadas e Administração do Estado), mas também a importância de serem reforçados outros valores como “viver sem distinção étnica, perdoar, partilhar e dialogar, amar a pátria e viver a guinendadi“.
No encontro participaram estudantes, professores, jornalistas, associações juvenis e grupos de “mandjuandade“.
Mandjuandade?
O blog de Luis Graça e Camaradas da Guiné apresenta as mandjuandades como “organizações associativas, [femininas], de base voluntária e igualitária, sustentadas pela solidariedade e partilha de interesses individuais e coletivos”.
Um artigo académico [.pdf] sobre “Relações de Alteridades e Identidades”, de Manuela Borges, da Universidade Nova de Lisboa, com Joseania Miranda Freitas e Luzia Gomes Ferreira, da Universidade Federal da Bahia, vai mais fundo:
A partir dos anos 1990, houve um recrudescimento da iniciativa e dinamismo da sociedade civil [da Guiné-Bissau] em todos os campos – político, social, econômico e também organizativo –, crescendo rapidamente as associações informais voluntárias com participação predominante de mulheres. Essas associações femininas, denominadas em crioulo mandjuandades, acumulam várias funções, perseguindo diversos objetivos: poupança e compra coletiva de bens de consumo (por exemplo, a compra de um tecido para fazer, no mesmo padrão, o vestuário usado nas festas e cerimônias), crédito individual aos membros, celebração de cerimônias familiares e religiosas e ainda organização de acontecimentos lúdicos.
O ex-militar português Luis Graça, no blog colectivo referido acima, estabelece uma comparação com as Kixikilas de Angola, “termo que, em kimbundu, quer dizer contribuição, em dinheiro, para um dado fim colectivo”:
Em África, em geral, e em Angola, em particular, é aquilo que se designa pela expressão inglesa Rotating Savings and Credit Associations (ROSCA), um sistema informal de poupança e crédito, um grupo de ajuda mútua, liderado em geral por uma mulher, a “mãe de kixikila”. O pequeno grupo, de cinco a dez elementos, tende a ser constituído por pessoas que estão ligadas entre si por laços de amizade, parentesco, vizinhança ou profissão. Cada elemento faz periodicamente uma determinada contribuição para um fundo comum que é depois utilizado rotativamente por cada um, com uma taxa de juro nula ou de valor reduzido. Na ausência de sistemas de crédito bancário acessíveis à generalidade da população, o kixikila voltou aos hábitos dos kaluandas como forma de atenuar ou reduzir o impacto da pobreza.
Mas voltemos às mandjuandades da Guiné-Bissau, suas raízes e evolução. Segundo um artigo da Lusa republicado no blog de Aly Silva, Ditadura do Consenso, “Mandjuandade é uma cultura” e tem origem nos lamentos inerentes à vida em casal:
Quando a mulher tinha queixas do marido procurava uma amiga ou amigas, a quem contava os seus desgostos, e criavam uma música sobre isso. Depois, quando a aldeia se reunisse, as amigas cantariam a música, ao mesmo tempo recados para o marido e lamentos da mulher.
“Basicamente mandjuandade é uma forma de as mulheres transmitirem os seus sentimentos, e uma fonte de conselhos, porque o marido quando ouve a musica já sabe que a mulher está a dizer o que se passa em casa” (…). Hoje já não é sobre a relação entre casais e já não se usam metades de barris mas sim tambores e tabuinhas para acompanhar os cânticos. Hoje são grupos de bairro que se juntam, que organizam festas, que animam cerimónias alegres (casamentos) ou tristes (funerais), ou mesmo cerimónias tradicionais como a do fanado (circuncisão e excisão).
Aliu Barri, músico, intelectual e político da Guiné-Bissau, dá exemplos dessas festividades organizadas nos dias de hoje pelas “mandjuandades”, num artigo publicado no Journal of African Music and Popular Culture, assinado pelo investigador Christoph Kohl:
Por exemplo: num bairro junta-se toda esta comunidade da juventude para, nos domingos, organizarem festas. Organizarem convívios. Se houver um casamento vão animar o casamento, se houver alguma cerimónia tradicional eles vão lá e cantam, se houver choro alguém morreu, cotizam, tiram o dinheiro, arranjam tudo que é necessário. Vão ficar lá por uma semana a animar a família do defunto. Então isso [diz-se] “mandjuandade”: arranjam até [trajes] quando houver um funeral.
Aliu Barri continua:
Tradicionalmente, “mandjuandade” é uma coisa que não pára. Existe em todos os bairros da cidade. Nas “tabancas” [aldeias] também organiza-se. Isso é que se chama “madjuandade”. Há pessoas que se destacam nessas “mandjuandades”, ganham muita fama, é isso é que nós dizemos “mandjuandade”. São manifestações culturais que existem em cada etnia.
(…) Há muitas festas que a “mandjuandade” faz. Mas se for um país progressista, um país que está a andar bem, “mandjundades” teriam possibilidades de apresentar toda a nossa cultura tradicional. Porque os tradicionalistas, os folclores nativos lá têm dificuldade de manifestar aquilo que eles têm. Mas como a “mandjuandade” está composta de várias etnias cada qual faz a apresentação da sua etnia, com isso e apreciando a “mandjuandade” vai conhecendo a manifestação de todas as culturas da Guiné. Eles cantam, canções de todas as etnias, porque a composição da “mandjuandade” tem todas as raças [etnias].
Apesar do carácter aparentemente aglutinador do cooperativismo das mandjuandades, segundo o blog Ação Cidadania existem ainda na Guiné-Bissau entraves de base à participação pública feminina, como “as mulheres serem mal vistas quando participam em acções deste género, haver ciúmes do marido” ou a “sobrecarga de trabalho em casa que não lhes deixa tempo para enveredarem em dinâmicas associativas”. No entanto, na lista de acções “pró desenvolvimento e paz” que podem ser desenvolvidas, fica o apelo a uma maior participação feminina, “para que haja mais oportunidades e espaço de participação e protagonismo nas associações e uma maior solidariedade entre os seus membros”, independentemente do género.