Cabo Verde: Contar Histórias e Fomentar a Escrita Criativa

Ao longo de sete semanas, um concurso de escrita criativa promovido pelo jovem jornalista cabo verdiano Odair Varela através do seu blog, Crioulo n'Descontra, levou uma dúzia de amantes das palavras de três continentes a pegarem nos seus teclados e a deixarem a imaginação fluir.

A motivação para o lançamento do concurso, em finais de Março, era “fomentar o gosto pela escrita e pelo evoluir linguístico e artístico”, e para isso Odair propôs uma série de quatro desafios, cujas respostas em formato de prosa ou poesia, foram publicadas no seu próprio blog.

No dia 9 de Maio Odair anunciou os vencedores, decididos através da contagem de visualizações dos seus textos. Neste artigo fazemos um apanhado das histórias contadas.

Como será o país em 2090?

Em reposta ao primeiro desafio, foram dadas largas à imaginação sobre os rumos possíveis para Cabo Verde em termos de desenvolvimento sustentável, energia, ambiente e alterações climáticas, como Anete Carvalho no País Museu, José Soares no poema “Verdes eram as ilhas”, ou a Retrospectiva 2012-2090, de Silvianne Spencer. O texto com mais visualizações foi de Suruk Rodrigues, que escreveu em forma de poema:

Homens do Atlântico. Foto de Martin Edstrom copyright Demotix (27/07/2008).

Homens do Atlântico. Foto de Martin Edstrom copyright Demotix (27/07/2008).

Constrói-se uma terra de betão.
E do sonho cultivado, colhe-se desilusão!
Que caia chuva, para transbordar apenas
barragens cheias de lágrimas dos que choram em vão!

Diferentes possibilidades de abordagem ao turismo foram também retratadas em vários textos, como por exemplo o de Letícia Varela, escrito em galego e intitulado Relógio do Tempo. Menções à hipotética extinção do crioulo cabo verdiano foram feitas nos textos de Nani Delgado, Não Vou Ficar, e de Ary Rodrigues, Um Povo Sempre Escravo, que fala também sobre o crescimento económico do país e as influências da China.

Carla Gonçalves contou a história de um antropólogo e investigador que em 2090 encontra o livro “A morabeza das ilhas crioulas”, cuja “capa clara onde figuravam dunas branquíssimas de uma beleza contagiante; belas morenas, flores e lá ao fundo algumas montanhas imponentes” o faz ir em busca do significado de “morabeza”. Chegado às ilhas, no entanto, o último morador conta que já “não há mais Cabo Verde“:

Eis que Nhô Chico lhe responde num inglês rudimentar: Morabeza era a nossa essência, a música, a saudade. Morabeza eram as nossas crioulas, uma diferente da outra, mas todas únicas. Morabeza eram as nossas praias de areias brancas e negras, as montanhas fortes e imponentes, a simpatia e acolhimento. Morabeza eram as flores, a diversidade cultural, a dança. Morabeza era aquilo que nos distinguia, que nos fazia únicos. Mas isso acabou e não há mais aquele Cabo Verde…

Eliminar e Escapar

Bonecas de Cabo Verde. Foto de Wanaku no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)

Bonecas de Cabo Verde. Foto de Wanaku no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)

“Alguém tem que ser eliminado e esta tarefa é tua”, eis o segundo desafio, que em prosa de ritmo acelerado deveria engendrar crime, acção e muito sangue.

Desde um patrão assassinado pela ex-funcionária descontente com a sua demissão, à Bela morena que sucumbiu ao veneno de uma aranha da espécie “Loxosceles anómala”, passando pelo “grande mistério da boneca assassina“, um crime passional, e o clássico mordomo suspeito, houve ainda lugar para um golpe de estado pela frente revolucionária, e para a introdução do movimento dos “indignados” em Cabo Verde, como escreveu Suruk Rodrigues sobre a história de Zeca:

Zeca sofria com perseguição política dos novos tempos, que poucos entendem, ou seja, na rua era bandido, na escola era drogado, e não conseguia bolsas de estudo, estágio, trabalho ou coisa melhor. Arquitectou com genialidade o movimento dos indignados de Soncent com sede e acção no Mindelo, que no mês de Julho de 2012 vinha a ocupar as manchetes dos jornais neoliberais numa dura perseguição aos “fascistas” e entre eles o pai da sua amada.

Acabou por ser apunhalado pelas costas pelo futuro sogro, em plena manifestação em praça pública.

Quem matou Eva?

Mais crime para aguçar a vontade de escrita, mas desta vez o desafio traçava à partida o perfil dos suspeitos do assassinato de Eva Sequeira, “viúva cinquentona” e abastada que foi encontrada num banho de sangue na sua mansão.

Quotidiano de Cabo Verde. Foto de Nuno Lobito copyright Demotix (12/02/2008)

Quotidiano de Cabo Verde. Foto de Nuno Lobito copyright Demotix (12/02/2008)

Partindo de um rol de personagens do qual constavam a “enteada da morta e que nunca teve uma boa relação com a madrasta”, o “médico aposentado que sempre nutriu um amor de juventude não correspondido por Eva”, o “jovem bem-parecido” que ninguém conhecia, o “filho da empregada [que] tinha uma devoção enorme por Cármen [a enteada]”, e a melhor amiga de Eva:

No final do interrogatório, o investigador Nataniel Borges prendeu dois suspeitos sob acusação de cumplicidade na morte da senhora Eva Sequeira. Quem foi para a cadeia? Quais os motivos que os levaram a cometer tão horrendo crime?

A história mais lida, escrita por Margareth Lima, atribuía a culpa à melhor amiga de Eva, num crime passional:

eu amei aquela vadia desde o dia em que a conheci. Sofria cada vez que a via com outro, meu único conforto era a existência de outra pessoa que ela ignorava o amor. E justo quando ganho coragem e me declaro ela pede desculpas dizendo que só me queria como amiga. Queria ficar com esse imbecil [o médico aposentado], porque era seu Adão. Mereceu morrer sem disfrutar do seu Adão.

Três dias e um adeus

O que farias se o médico te dissesse que tinhas somente três dias de vida?

O arrependimento de quem ao longo da vida só soube ser “vil, carrasco, oportuno e muitas vezes sádico por poder”, levou-o a visitar porta a porta todos aqueles a quem devia pedidos de desculpa pelo seu comportamento em vida.

Mulher de Santo Antão. Foto de Julien Lagarde no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)

Mulher de Santo Antão. Foto de Julien Lagarde no Flickr (CC BY-NC-ND 2.0)

Já a “poetisaquando foi morrer,  “[apressou-se] a condensar [sua] vida à dos [seus] familiares e amigos mais chegados” numa celebração que durou toda a noite.

Vanda quis procurar o que sempre desejara para além da sua vida crioula: ver a neve. Acabou fechando os olhos nos alpes suíços com um sorriso nos lábios e o coração cheio.

Enquanto a “noiva“, antes da sua morte, decidiu bloquear todas as redes sociais – “Nunca gostei da ideia de ver pessoas mortas com Facebook” – Vitoria, a personagem do texto de Margareth Lima, vencedora do concurso de escrita criativa, a partir da Bolívia, tirou partido da rede social para convocar uma grande festa de aniversário e despedida com “familiares, ex-colegas, professores, companheiros de trabalho, amigos até inimigos”. Foi ela a única que teve uma morte reversível, já que os resultados das análises médicas afinal não eram os seus.

Terminou assim o primeiro concurso de escrita criativa lançado exclusivamente por um blog e promovido através do Facebook, lançando a semente para a “criação de hábitos e rotinas de escrita que [possam] ser enraizados e ainda mais desenvolvidos com o correr do tempo”.

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