Portugal: Crónica de Angola Abre a Porta ao Censor dos Mídia

Uma semana depois da emissão de uma crónica de opinião do jornalista e escritor premiado Pedro Rosa Mendes, na rádio pública Antena 1, a Radiodifusão Portuguesa (RDP) anunciou o encerramento do programa “Este Tempo”. A peça criticava os “grosseiros exercícios de propaganda e mistificação” transmitidos em directo num programa da RTP (televisão pública), a partir de Angola, onde estavam presentes vários governantes, políticos e homens de negócios, entre eles o Ministro Miguel Relvas.

A notícia, publicada a 24 de Janeiro, aponta que o que terá levado ao encerramento do programa, segundo Rosa Mendes, foi o facto de “a administração da casa não [ter] gostado da última crónica sobre a RTP e Angola”. Na blogosfera e redes sociais não tardaram as reacções à “machadada na liberdade de expressão em Portugal”.

A jornalista Helena Ferro de Gouveia, no seu blog Domadora de Camaleões, resume o conteúdo da crónica:

Informação livre. Foto de stencil em Lisboa por Graffiti Land no Flickr (CC BY-NC 2.0)

Informação livre. Foto de stencil em Lisboa por Graffiti Land no Flickr (CC BY-NC 2.0)

um retrato em que ninguém fica bem ao espelho, nem a elite portuguesa, nem os engravatados angolanos – incomodaram o “baton da ditadura” e alguns serviçais lusos que vendem princípios a preço de saldo. (…)

A verdade sobre a “oleocracia” angolana, país onde a cornucópia da riqueza é restrita a alguns e mais de metade da população vive na mais abjecta pobreza, é uma fronteira que não se atravessa.

“Denotando o seguidismo do poder português ao capital angolano”, como descreve o blog moçambicano Ma-schamba, Angola é mais reconhecido em Portugal como destino para os que face à crise não encontram emprego, do que pelos meandros políticos, económicos e sociais apontados na crónica de Pedro Rosa Mendes. Em Dezembro de 2011, o Primeiro Ministro Pedro Passos Coelho recomendou, aliás, aos desempregados portugueses que emigrassem para Angola (entre outros destinos lusófonos de eleição).

Uma semana antes da notícia, o político e académico José Pacheco Pereira mostrava as suas preocupações com “o progressivo controlo da comunicação social portuguesa por grupos económicos angolanos que, onde tocam e entram, acabam com a possibilidade de se dizer o que se disse atrás.” Ainda antes do anúncio do fecho do programa, no seu blog, Abrupto, questionava-se “para que serve a ‘Informação’ da RTP?”:

o que leva a RTP em aperto financeiro a enviar uma equipa à cidade mais cara do mundo, gastar tempo de satélite, deslocar pessoas e bens para acabar por fazer um pífio exercício de propaganda centrado nos estereótipos sobre a relação entre Portugal e Angola, bem longe de qualquer realidade? O que leva a tão deprimente e caro exercício de banalidade absoluta, a não ser dar tempo de antena a um ministro, por singular coincidência o mesmo que tutela a RTP, acolitado pelos mesmos de sempre (…)?

Mais questões sobre o estado actual dos serviços públicos de informação em Portugal foram também levantadas por Raquel Freire, outra jornalista de “Este Tempo”, que na sua crónica de despedida (transcrita no Facebook) afirmou:

Numa democracia o serviço público serve para ser a voz das pessoas. Numa ditadura serve para ser a voz do dono, ou seja do governo. Na nossa situação actual, temos um governo que nos manda a nós portugueses emigrar, e ataca os nossos direitos fundamentais. Por isso, a rádio pública ser a voz do governo, não é sequer ser a voz daqueles senhores que alguns de nós elegeram, porque este governo é a voz da chaceler alemã, é a voz dos banqueiros alemães.

Jornalistas de "Este Tempo": António Granado, Gonçalo Cadilhe, Raquel Freire, Rita Matos e Pedro Rosa Mendes. Cartaz de Art.21º partilhado no Facebook juntamente com transcrição da Constituição da República Portuguesa sobre a Liberdade de Informação e Expressão.

Jornalistas de "Este Tempo": António Granado, Gonçalo Cadilhe, Raquel Freire, Rita Matos e Pedro Rosa Mendes. Cartaz de Art.21º partilhado no Facebook juntamente com transcrição da Constituição da República Portuguesa sobre a Liberdade de Informação e Expressão.

A notícia foi dada um dia antes da publicação do ranking internacional 2011-2012 [en] sobre liberdade de imprensa lançado pela organização Repórteres Sem Fronteiras, no qual Portugal está em 33º lugar, com uma subida de 7 lugares desde o último relatório publicado em finais de 2010.

Numa análise ao relatório, o jornalista e investigador sobre questões de Angola, Orlando Castro, no seu blog Alto Hama, disse em tom irónico que “este ano Portugal e Angola vão subir mais uns tantos lugares graças, sobretudo mas não só, ao programa da RTP feito em Luanda e à decisão da RDP cortar o pio a quem não quer ser a voz do dono”, e acrescentou:

Creio que o relatório não refere mas, quanto a mim, tudo se deve ao contributo decisivo dado pelo ministro Miguel Relvas e, é claro, a Fernando Lima, consultor político do Presidente da República de Portugal, e seu ex-assessor de imprensa, para quem “uma informação não domesticada constitui uma ameaça com a qual nem sempre se sabe lidar” [Nota GV: declarações noticiadas a 4 de Janeiro].

“A verdade é um veneno”, disse Pedro Rosa Mendes na sua última crónica, emitida a 25 de Janeiro. O jornalista terminou com duras críticas a “uma sociedade asfixiada por valores do silêncio, da cobardia, do bajulamento” após 40 anos de democracia em Portugal:

Podemos sempre pensar que apenas em cenários limite – genocídio, a guerra, extermínio – acontecem escolhas-limite; e que é a violência absoluta ou é a humilhação ou o sofrimento absoluto que impõem a revolta, o inconformismo, a coragem; ou não. Tenho para mim que as escolhas-limite se fazem todos os dias, no nosso quotidiano; e duvido muito que quem vive de espinha dobrada em tempo de paz , em tempo feliz (como é já nos esquecemos o tempo democrático) seja capaz de endireitar a espinha em tempos difíceis.

Sobre a alegada configuração de “violação de direitos, liberdades e garantias ou de quaisquer normas legais ou regulamentares aplicáveis às actividades de comunicação social”, diz a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) estar já a investigar o caso.

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