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Portugal: A Reputação do (defunto) Chefe da Polícia Política

Categorias: Europa Ocidental, Portugal, Arte e Cultura, História, Lei, Liberdade de Expressão, Literatura

Sobrinhos do defunto major Silva Pais, o último director  da PIDE [1] (1962-74), polícia política do “Estado Novo [2]” em Portugal, clamam ultraje à memória do tio por peça de teatro em cujos diálogos se lhe imputa o envolvimento no assassinato do General Delgado. Em Maio, conforme reportámos [3], abriu-se audiência criminal contra a autora da peça “A Filha Rebelde” e os directores do Teatro Nacional D. Maria II que a levaram ao palco em 2007.

Oposição e Morte

Delgado [4] rompeu com o regime nacional-católico candidatando-se à eleição para Presidente da República (1958), agendada pelo ditador Salazar, com surpresa de todos, por “sufrágio universal”. Universalidade relativa, claro. Só os alfabetizados podiam votar e o analfabetismo era esmagador. E as fraudes eleitorais eram regra (os mortos “votavam”). Mas foi a primeira assunção do sufrágio universal para a Presidência da República. Era estranho.

Todavia o “sufrágio universal” traduzia, para Salazar,  expressão de mero assentimento popular e não uma opção programática dos eleitores. Este “sufrágio universal” dos nacional-católicos tem significado específico.

Delgado apresenta-se. A campanha é viciada. Proibiram-lhe manifestações, comícios, desfiles. Impediram-lhe contactos com a população. Pretensamente vencido nas urnas, o general afasta-se alegando fraude. A PIDE foi incumbida de o raptar além fronteiras. Matou-o em Espanha. Por espancamento. Ficcionou-se um disparo acidental. Não houve versão oficial. O evento esclareceu-se em julgamento, finalmente possível, em 1981. No Cantigueiro, Samuel lembra [5]:

[6]

BIlhete de identidade do director da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado). Imagem do domínio público.

o assassino Silva Pais estava a ser julgado exactamente pela participação nesses crimes [assassinatos de Humberto Delgado e secretária], quando morreu de causas naturais seis meses antes de ser lida a sentença.

Os sobrinhos do director da PIDE insistem que a peça de teatro (centrada na filha de Silva Pais) é crime de ofensa à memória do tio “por em três falas da peça se insinuar que o biltre estaria ligado aos assassinatos“. Peticionam indemnização de 30.000 euros. Nem o Ministério Público (MP) acusou, parece. Contudo um tribunal criminal recebeu a acusação (particular) e abriu audiência. Podia tê-lo feito?

Direito Internacional dos Direitos do Homem

A simples existência e tramitação do processo pode traduzir violação da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, por oposição aos critérios jurisprudenciais do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. O fenómeno é compatível com o lugar onde a própria tradução oficial da Convenção Europeia está viciada, “traduzindo-se” ali “reputação” por “honra” (não é a única adulteração).

"Mural colocado na cadeia do Aljube com o nome de todos (dos que existe registo) os homens e mulheres assassinados pela PIDE, alguns a mando directo desse facínora chamado Silva Pais". Foto de Jota Daniel, partilhada no grupo do Facebook em Solidariedade com os réus do processo crime «A Filha Rebelde» [7]

"Mural colocado na cadeia do Aljube com o nome de todos (dos que existe registo) os homens e mulheres assassinados pela PIDE, alguns a mando directo desse facínora chamado Silva Pais". Foto de Jota Daniel, partilhada no grupo do Facebook em Solidariedade com os réus do processo crime «A Filha Rebelde»

Importa debater a  incompatibilidade destas práticas (reiteradas) com os pressupostos da democracia. Não convém ao Estado Democrático a prática institucional de estado nacional-católico, imposta por (evidentes) deformidades da formação.

Delgado Rosa, investigador, aponta a possibilidade de se abrir aqui “um precedente gravíssimo [8]”. Talvez não. A não ser no plano da condenação internacional do Estado por violação dos art.ºs 17 e 46 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [9], (clara proibição de interpretar a Convenção contra si própria e exigência da eliminação, ao menos tendencial, do problema onde a condenação do Estado radicou). Era útil uma exautoração exemplar de tais práticas no Tribunal Europeu.

Faltam dados. Na imprensa, como nos blogues. (Exemplo: Houve pronúncia -inculpação confirmada por juiz para debate em julgamento?)

Há bons protestos.

Protestos e Polémica

As atrocidades infligidas aos opositores, por inspectores e agentes sob a alçada de Silva Pais, enchem milhões de páginas no Arquivo da Torre do Tombo [arquivo histórico central],

lembra o movimento cívico “Não apaguem a memória” [10].

Foto da peça A Filha Rebelde exibida no Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) em 2007. Copyright Margarida Dias, TNDM II. [11]

Foto da peça A Filha Rebelde exibida no Teatro Nacional D. Maria II (TNDM II) em 2007. Copyright Margarida Dias, TNDM II.

Em Caligrafias ìberes sublinha [12] Rosário Duarte da Costa a gravidade da censura contra homem de cultura e professor universitário, caso do antigo director do Teatro Nacional de cuja direcção foi afastado, durante este processo e por causa dele. (Facto não noticiado).

Determinada, Margarida Belchior deixou [13] À Beira Rio:

Confio que seja feita justiça, para já no tribunal, (…) e em muitas outras dimensões da nossa vida e actividades colectivas: reedição do livro, levar a peça novamente à cena(…)

No Portugal dos Pequeninos, João Gonçalves reproduz [14] texto de Cintra Torres (do Público):

Correcto será defender, em primeiro lugar, os direitos de quem exprime opiniões para nós detestáveis ou factos para nós desagradáveis.

À “porta da Loja” diz [15] o José, à bolina, com autoridade:

O que a peça de teatro pretende é imputar factos concretos que podem ser falsos e que nada autoriza se publiquem ou imputem porque as pessoas visadas estão vivas e são da família do difamado.

Pensa que pensa assim o jurista médio à moda da terra. Mas pode haver-se por estranha a afirmação de envolvimento do antigo director em operação da “polícia” que só ele dirigia?

Esta renitência ante a liberdade de expressão tem uma única fonte doutrinária actual: a Libertas Praestantissimum [16]. Aqui invertem-se os termos. É preciso que alguém, ou alguma coisa,”autorize” a falar. E a jurisprudência local está cheia de aberrações similares. Tais minutas são incompatíveis com qualquer democracia e violam a Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Só a exigência do silêncio tem de demonstrar-se em Direito, não a palavra. A minuta é falha. Desamparar tais minuteiros tornou-se tarefa política. É preciso cortar-lhes os textículos.

Em Contra Ordem, Kritis, usa o picador [17]:

Está (…) prejudicada a defesa do bom nome do director geral de uma organização declarada criminosa por texto legal. Estão todos errados, portanto.

Sublinha:

(…) a humilhação da submissão de um autor teatral à escumalha da reinserção social [18], (…) os absurdos de se ser interrogado (…) sem defensor e por assistentes sociais asininas, (…) o absurdo (…) que se traduz na transferência para debate e decisão penal de uma tarefa que é da crítica literária.

Falta passar da dureza dos factos à das ideias. É inaceitável esta resistência aos critérios (vinculativos) do Tribunal Europeu quanto à liberdade de expressão, criação, investigação e consciência. Deve opor-se-lhe um só argumento jurídico: “não pode ser”.

Essas minutas serão espelho de mentalidade, não Direito.  E são provavelmente delitos.