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Brasil: O blog da Maria Bethânia e o financiamento da cultura

Categorias: América Latina, Brasil, Arte e Cultura, Ativismo Digital, Tecnologia

A recente notícia de que o Ministério da Cultura brasileiro (MinC) autorizou a famosa cantora Maria Bethânia [1] a captar R$ 1,3 milhão de reais [aproximadamente 777 mil dólares americanos] para a criação de um blog de poesias despertou a ira de blogueiros, tuiteiros e de ativistas na área da cultura.

Esta captação, autorizada pelo MinC, se enquadra na chamada Lei Rouanet [2], que rege a política de fomento estatal à área da cultura no Brasil. A lei autoriza que empresas e pessoas físicas se valham de mecanismos de renuncia fiscal sobre o imposto de renda com o objetivo de destinar estes recursos a projetos culturais.

Maria Bethânia. Fotografia por João Milet Meirelles, sob licença Creative Commons 2.0 [3]

Maria Bethânia. Fotografia por João Milet Meirelles, sob licença Creative Commons 2.0

Segundo [4] o site Comunique-se, a cantora irá gravar 365 vídeos para o blog O Mundo Precisa de Poesia, em que ela declamará poesias suas e e outros autores:

Os 365 vídeos, um para cada dia do ano, serão dirigidos por Andrucha Waddington, famoso cineasta. O valor do blog e a escolha do cineasta para dirigir os vídeos causaram polêmica. Muitos internautas questionam se Maria Bethânia não conhece o WordPress, Blogspot e YouTube, ferramentas gratuitas.

As principais críticas dos blogueiros e tuiteiros se centram no alto valor permitido para captação e no fato de uma artista consagrada precisar se valer deste tipo de expediente para conseguir patrocínio enquanto centenas de outros artistas menores não encontram meios para sobreviver.

Cartaz do protesto "Queremos ser Maria Bethania" convocado por Leon Prado no Facebook. [5]

Cartaz do protesto "Queremos ser Maria Bethania" convocado por Leon Prado no Facebook.

No Twitter, as reações foram indignadas:

@M_Caleiro [6]: Bethania é uma grande artista, não se contesta. Mas não precisa de dinheiro público para montar blog, enquanto muitos, com talento, precisam

@bete_davis [7]: @M_Caleiro [8] tb acho que ela e o andrucha não precisam disso, verba pra cultura devia ir pra quem ñ consegue captar

No Facebook, a advogada Maria Carolina Campos comenta [9]:

Maria Carolina Campos [10]: depois dos outros 3 milhões que ela conseguiu pra turnê que aqui em BH custava quase R$ 200,00 o ingresso!

A autorização do MinC à captação de recursos significa que o Estado abriria mão de milhares de reais em impostos:

@viniciusduarte [11]: Autorizar a Bethânia a captar R$ 1,3 mi corresponde ao governo ABRIR MÃO de R$ 520 mil em impostos, no mínimo.

@viniciusduarte [12]: No mínimo, porque ela pode captar 100% do valor com pessoas físicas (há mercado pra isso) e o valor sobe pra R$ 1,04 mi.

Pablo Villaça, do blog Cinema em Cena calcula que, descontado o valor que iria para os captadores, sobraria cerca de 1,17 milhão de reais para a produção do blog da cantora. Cada vídeo custaria aproximadamente 3 mil e duzentos reais, ao que ele diz [13]:

A pergunta, então, deveria ser: três mil reais por vídeo é um valor tão absurdo assim? Impulso inicial de quem sabe como é caro produzir audiovisual: não, não é.

Porém, ele completa que, no entanto, este valor não seria compatível com vídeos de 3-5 minutos com apenas uma pessoa declamando poesias, e completa:

Claro que, para ser completamente justo, eu (na verdade, qualquer um) só poderia bater o martelo nesta acusação depois de estudar a planilha de custos apresentada pelos proponentes ao Ministério da Cultura. Mas ainda assim, considerando a logística da produção e uma experiência básica em audiovisual, a conta ainda soa exageradamente salgada e fora de propósito.

Tiago Agostino, via Twitter, disponibilizou [14] (PDF) o projeto original enviado por Maria Bethânia para o Ministério da Cultura. O Blog Implicante prontamente esmiuçou os valores [15] previstos e apontou indignado:

A própria Maria Bethânia é a DIRETORA ARTÍSTICA (R$ 600 mil) e também ocupa os cargos destinado à “pesquisa” (R$ 36 mil).

O Ministério da Cultura, contudo, lançou nota [16] afirmando a legalidade do processo e reiterando que esta aprovação seguiu estritamente a legislação:

Os critérios da CNIC são técnicos e jurídicos; assim, rejeitar um proponente pelo fato de ser famoso, ou não, configuraria óbvia e insustentável discriminação;

Antônio Mello, em seu blog, responde [17] à pergunta se é legal e está certo tal financiamento:

Está. É a lei.

O que se deve discutir é se o governo deve abrir mão do poder de escolha de onde deve investir integralmente o dinheiro dos impostos.

Qual é, então, a grande questão que gerou esta polêmica, que levou o termo “Maria Bethânia” a passar o dia nos Trending Topics brasileiros? O blog “Imprençaexplicita [18] que:

[..] é preciso esclarecer que a questão não é o blog, nem a Bethânia. O problema maior é a “Lei Rouanet”.

Para quem não está familiarizado com a lei Rouanet, eu explico e é algo bastante simples. Todo ser humano {{ou empresa}} que tenha intenções culturais pode mandar um projeto para a lei Rouanet. Você (…) preenche os formulários (… e) o projeto é aprovado {ou volta para você corrigir, repetir o processo até que seja aprovado}. Lindo! E aí?!

Aí você pega o orçamento aprovado, vai até alguma empresa e diz: “Oi, eu sou Fulano, tenho um projeto cultural aprovado pela lei Rouanet e gostaria do seu patrocínio”.

Este mecanismo, apropriado pelos interesses de grandes nomes e regido pelo mercado sofreu grandes distorções ao decorrer dos anos, favorecendo nomes conceituados sobre iniciantes, como explica [19] Maurício Caleiro:

(…) o imbroglio envolvendo a cantora baiana pôs a nu as vicissitudes da “Lei Rouanet”, instrumento que, logo após ser criado, desempenhou papel fundamental na sobrevivência de determinados setores artísticos durante o outono neoliberal, mas que, como o episódio em questão evidencia, acabou por gerar graves distorções nas relações entre economia, ideologia e produção cultural.

Alfredo Manevy, em entrevista ao site A Rede, ilustra [20] o problema em questão:

O Minc aprova 10 mil projetos por ano. Desses 10 mil, 20% captam recursos e 80% batem nas portas das estatais e de empresas privadas sem sucesso.

Conceição Oliveira, em seu blog, complementa [21]:

Os artistas que já estão inseridos na indústria cultural e que têm, devido a sua fama e visibilidade, muito mais chances de conseguir recursos que possibilitem desenvolver um produto profissional.

Print do Blog satírico: Blog da Bethânia, 1 milhão de motivos para você acessar [22]

Print do Blog satírico: Blog da Bethânia, 1 milhão de motivos para você acessar

É válido lembrar que o Ministério da Cultura, comandado pela ministra Ana de Hollanda vem sendo bombardeado por críticas desde o começo do ano, depois de ter retirado a licença Creative Commons do site do ministério, conforme reportado [23] [en] pelo Global Voices no passado mês de janeiro, e de ter tomado diversas atitudes consideradas um retrocesso por uma ampla gama de ativistas culturais e políticos.

Para ironizar com a situação, foi criado o “Blog da Bethânia, 1 milhão de motivos para você acessar [22]” pelo publicitário Raphael Quatroci [24].

Artigo feito em co-autoria com Raphael Tsavkko Garcia [25].