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Brasil: Especulação Imobiliária Ameaça o Cerrado

Categorias: América Latina, Brasil, Desenvolvimento, Governança, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Protesto
4 bedroom property advertising in the street. [1]

Propaganda de rua – imóvel com 4 dormitórios. Foto: Reverbe, uso autorizado.

A especulação imobiliária está tomando conta do Brasil em meio ao forte impulso da economia brasileira  e a uma nova rodada de farra consumista: como as pessoas têm acesso a mais crédito, elas estão predispostas a perseguir seus sonhos, como livrar-se do aluguel e comprar a casa própria. Nesse cenário, construtoras, fornecedores e outras empresas que integram a cadeia de serviços imobiliários estão dominando cada metro quadrado livre nas cidades e convertendo-os em prédios de apartamentos, edifícios comerciais e condomínios – tudo montado rapidamente com o auxílio das novas tecnologias de construção e vendido facilmente graças à boa oferta de crédito. Esse fenômeno apresenta algumas ameaças para a natureza e a própria sociedade, na medida em que modifica a forma como as pessoas se acomodam em seus lares.

Em Brasília [2], capital do Brasil, esse tema vem ganhando destaque porque os projetos imobiliários estão se multiplicando e invadindo os últimos vestígios da vegetação típica da região, conhecida como cerrado [3].

Brasília é uma cidade moderna, produto das mentes criativas de Lúcio Costa [4] (o urbanista responsável pelo projeto do Plano Piloto) e Oscar Niemeyer [5] (o arquiteto responsável pelos projetos arquitetônicos da cidade). No Plano Piloto, as superquadras (quadras com 300m de comprimento) abrigam prédios com não mais de 6 andares, permitindo que todos admirem o céu e, onde houver condições, vejam o  Lago Paranoá [6]; o piso térreo dos edifícios, chamado pilotis [7], é considerado área pública – não pertence ao espaço privado dos edifícios, portanto – e, supostamente, o pilotis deveria ser compartilhado pela comunidade (isso se funda na ideia de que as pessoas poderiam circular livremente pelos espaços e os prédios fluturariam acima de tudo [8], de acordo com o blogueiro Daniel Duende, “não ocupando os espaços mas, pelo contrário, colocando-se harmonicamente sobre eles”). Esse ideário foi parte de uma tendência urbanística dos anos 1960. Para Fernando Serapião [9], um arquiteto e urbanista, os traços peculiares de Brasília não encontrarão paralelo:

Apesar das virtudes, nenhuma outra cidade terá uma área residencial como a da capital brasileira. Suas contradições e problemas foram fundamentais para a evolução do pensamento urbanístico. Desde os anos de 1960, os urbanistas não rezam mais a cartilha que gerou Brasilia.

Image of the Pilot Plan, reminding an airplane (or a butterfly as Lúcio Costa imagined) [10]

Imagem original do Plano Piloto, Brasília. Disponível no site do Ministério da Cultura sob licença CC: Atribuição-Uso Não-Comercial-Não a obras derivadas 2.0 Brasil

Para Roberto Segre [11], que é também um arquiteto bem como um crítico e historiador da arquitetura latinoamericana,

(…) a cidade expressa agora as contradições políticas, econômicas, sociais e culturais existentes no país.

As contradições que Segre menciona macularam os conceitos utópicos da capital do Brasil. O Professor Carpintero [12] (p. 4-5), citando os padrões conceituais de Brasília como propostos por Lúcio Costa, o urbanista responsável pelo Plano Piloto [13] de Brasília, resume a ideia geral do que uma cidade significa (ou do que ela poderia significar):

Ela (a cidade) deve ser concebida não como simples organismo capaz de preencher satisfatoriamente e sem esforço as funções vitais próprias de uma cidade moderna qualquer, não apenas como URBS, mas como CIVITAS, possuidora dos atributos inerentes a uma capital … a cidade não é apenas construção – urbs -, mas lugar de cidadãos, – civis, civitas.

To trade savannah's plants for millionaire property plans is bad a bargain for Brasilia (Federal District) [14]

"Trocar as plantas do cerrado pelas plantas dos imóveis milionários é mau negócio pro DF". Foto: Daiane Souza, com autorização de uso.

As áreas livres previstas por Lúcio Costa, a escala bucólica [15] [en], agora são ameaçadas pelos planos corporativos que estão tirando proveito do mercado imobiliário brasiliense, sempre em expansão. Blogueiros como Pedro Júnior [16] acreditam que há uma bolha imobiliária [17] em Brasília. Com a oferta de propriedades crescendo, maiores são os custos ambientais. Os terrenos com obras estão se espalhando e isso vem ocorrendo sob fortes críticas: ativistas denunciaram em uma série de vídeos (assista ao video: 1 [18], 2 [19], 3 [20]) o impacto da construção do Setor Noroeste na natureza e nas vidas de uma comunidade indígena que habita a área verde onde estão as obras do projeto. O Setor Noroeste é apresentado e vendido como o primeiro bairro ecológico [21] do Brasil.

Durante as audiências públicas que debateram o projeto do Setor Noroeste, mesmo a presença indígena na região – no local chamado Terra Indígena Santuário dos Pajés [22] ou Reserva Indígena do Bananal [23] – foi questionada ou tratada com desprezo. O ex-governador do Distrito Federal (onde se localiza Brasília), afirmou [24] [pt] (1min37sec) em uma audiência pública em 2007: “naquela área (…) onde será construído o Setor Noroeste (…), há exatamente seis índios vivendo naquela área”.

[25]

Protesto indígena contra a construção do Setor Noroeste. Foto: Movimento Cerrado Vivo, disponível no blog Os Verdes de Tapes.

Para construir o Setor Noroeste, uma área coberta por cerrado já foi desmatada. Brevemente, em outra frente de expansão planejada para Brasília, o Setor Sudoeste pode vir a abrigar 22 novos edifícios, cada um com 6 andares,  apesar dos protestos da comunidade [26] e de questões legais [27] envolvendo o projeto, que foi o resultado de uma permuta entre a Marinha do Brasil, proprietária das terras públicas onde a expansão do Setor Sudoeste está prevista, e uma construtora (que ofereceu à Marinha, em troca, uma cota de apartamentos em Águas Claras  (uma Região Administrativa, equivalente a um bairro, distante cerca de 20 minutos de Brasília).

Protest against real estate speculation and for the savannah (Cerrado) in 2009. Photo from blog Grupo Currupião. [28]

Protesto contra a especulação imobiliária no Setor Sudoeste e pela preservação do cerrado. Foto: blog do Grupo Currupião.

O cenário de especulação contrasta com o fato de a capital federal ter sido tombada pelo Patrimônio Mundial [29] (Unesco [30]) [en] in 1987. Cidadania Online [31] destaca que

O tombamento assegurou que as premissas urbanísticas do Plano Piloto não podem ser desfiguradas, nem pela especulação imobiliária.

Em 11 de setembro, o Brasil comemorou o dia do Cerrado [32]. Para alguns ambientalistas, no entanto, não há muito para celebrar. O cerrado é também a base da impulsão agrícola brasileira. Apesar da rica biodiversidade, não é tão famoso quanto a Mata Atlântica. Os esforços para protegê-lo são mais difusos, ou, menos coordenados em termos globais. Um artigo recente da revista The Economist [33] [en] atesta que o Brasil é “frequentemente acusado de estar desmatando a Mata Atlântica para criar fazendas, mas dificilmente essas terras novas estão localizadas na Amazônia; a maioria é cerrado”. Tal afirmação provavelmente poderia ser expressa pela média dos  brasileiros que não conhece esta vegetação, ou que não é diretamente afetada pelo seu desmatamento. Pode ser esse o caso de Brasília, onde o povo e o governo talvez não valorizem a vegetação típica local.

De fato, SOS Parque Ecológico do Guará até mesmo lamenta [26] a falta de interesse do governo do Distrito Federal pelo meio-ambiente e pela qualidade de vida.

Brasília não é a única região onde a especulação imobiliária está se firmando. Dimas Santos, vice-prefeito do município de João Alfredo, em Pernambuco, diz em seu blog [34] que as pessoas o acusam de ser “contra o progresso” quando ele formula reflexões sobre os impactos negativos da especulação imobiliária na natureza. Ele também questiona o papel dos especuladores na sociedade brasileira e discute o uso de recursos públicos para construir a infraestrutura básica em determinadas regiões para, logo depois, vermos esses benefícios sendo privatizados por especuladores que compraram as terras exatamente para isso: aguardar as melhorias e vendê-las. Na visão de Dimas, a situação atual pode ser resumida pela canção de Chico Science, um compositor da região (já falecido), que canta

a cidade não pára, a cidade só cresce: o de cima sobe, o de baixo desce.

Aos leitores, pergunto se a especulação imobiliária está ocorrendo em suas regiões também. Por favor, usem os comentários para compartilhar as suas histórias.

Este artigo, na versão [en],  foi revisado por Marta Cooper. [35]