A lei brasileira de direitos autorais está entre as cinco mais rígidas do mundo no que diz respeito ao acesso a produções culturais e informações em obras protegidas. Uma proposta de reforma da lei brasileira de direitos autorais (Lei 9.610/98) por meio de um projeto está em consulta pública até dia 31 de agosto, depois de ser extendida de seu período inicial de 45 dias, na tentativa de ampliar a oportunidade de participação. Mais de 1.200 contribuições sobre as propostas de mudança foram feitas desde o dia 14 de junho, o que tem provocado intensas discussões na blogosfera e twittosfera. O blog Direito do Povo resume:
“A discussão sobre as aplicações da LDA é sempre complexa. De um lado, os autores e o respeito às suas obras. De outro, o direito de acesso à cultura e ainda os mecanismos que movem a economia e a indústria fonográfica.”
Com esta nova proposta de lei, estão em foco importantes questões como a cessão de direitos; o direito a cópia privada; permissão de cópia de livro esgotados; uso de filmes e músicas em escolas como material didático; licenças não voluntárias e o papel do governo; arrecadação de direitos autorais; possibilidade de acesso offline a arquivos digitalizados de instituições; entre outros pontos.
Os assuntos mais debatidos na rede são questões como a dificuldade do acesso público à cultura, a liberdade do autor em relação a sua obra e o enriquecimento de intermediários. Sobre os equívocos da atual lei, Marília Maciel, pesquisadora do Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista ao Nós da Comunicação comenta:
“O atual modelo de proteção de direito autoral privilegia muito mais o intermediário, seja editora ou gravadora, do que o artista propriamente dito. É preciso que se retome o foco no artista e que se estabeleçam limitações e exceções que possam trazer um equilíbrio de volta, dos interesses do artista e da sociedade em obter acesso ao conhecimento e às obras intelectuais.”
A partilha e acesso à informação de uma forma livre é muitas vezes vista como pirataria. Leonardo Brant, do blog Cultura e Mercado publicou a imagem acima e questiona o que é pirataria:
“O que é pirataria? Quem são os verdadeiros usurpadores do conhecimento alheio? Quem a pirataria beneficia? E quem atinge? Podemos considerar piratas crianças e jovens que compartilham arquivos, se apropriando do conhecimento gerado por nossa civilização? Quem é o autor de uma obra remixada? Existe obra 100% original? Como sobreviverá o artista diante da proliferação da dita “pirataria”? E a indústria cultural, é necessária numa época de compartilhamento de dados pier-to-pier?”
O blog Hackeando Aibo aponta para uma incompatibilidade da nova lei com a atual conjuntura tecnológica e de compartilhamento de informações através da internet:
“Ao disponibilizar conteúdo na rede o seu criado também não será prejudicado? Sim e Não. Na verdade é uma via de duas mãos. Se formos pensar pelo lado da desconstrução sim. Mas se formos pela construção a rede é uma nova plataforma com diversas maneiras de ser utilizada sem contar no seu potencial de divulgação, o maior do mundo sem sombra de dúvida. As possibilidades são muito maiores que as dificuldades na relação criador/ Internet. É é exatamente em cima delas que se deve trabalhar. O compartilhamento de informações na rede é um fato que já está dado e defender agora o copyright de 70 anos como as indústrias tem feito é continuar obsoleto frente a uma realidade.”
Apesar da música parecer ficar mais em foco em debates sobre direitos autorais, a questão é muito mais profunda e tem, como já apontado, seu principal benefício em resolver importantes questões como o direito do cidadão de acesso a cultura. O blog “Cineclube: Apontamentos” enfatiza a importância da nova lei para uma maior circulação da produção cultural:
“A trajetória política desse anteprojeto de lei vai ser das mais momentosas, justamente pela importância central que tem no processo de apropriação e circulação da produção cultural que, por sua vez, são cada vez mais importantes para a preservação ou para a transformação das relações de poder na sociedade mundial.”
Um dos pontos mais questionados na atual lei de direito autoral é a ausência de transparência na arrecadação. O ECAD, polêmico orgão regulador de direitos autorais de música, é por exemplo, um dos mais debatidos e chegou até a ser alvo de de investigação sobre cartel depois de uma denúncia sobre abusos na arrecadação:
“A Lei do Direito Autoral confere ao Ecad o monopólio para arrecadação e distribuição dos valores relativos à execução pública dos direitos autorais. Os titulares dos direitos autorais podem fixar os valores para a execução pública de suas obras individualmente ou por meio de associações. No modelo vigente hoje, as associações fixam os valores dos direitos em conjunto, e não de forma individual. Segundo o ministério, o modelo de gestão coletiva dos direitos autorais conferiu ao Ecad o monopólio legal sobre as atividades de arrecadação e distribuição de valores, mas não sobre a atividade de fixação desses valores.
O núcleo artístico se junta ao debate. Neste vídeo, o compositor Tim Rescala questiona como uma associação que deveria proteger o autor tem mais de 7000 processos contra irreguralidades na arrecadação dos direitos daqueles que deveria proteger. No entanto, alguns acreditam que o problema não é ECAD, mas a falta de fiscalização do governo, como o produtor Nelson Motta diz nesta carta aberta para Rescala:
O Ecad, como qualquer empresa, deve ser fiscalizado pelo Estado, que lhe cobra impostos, e pelo cumprimento de leis trabalhistas, comerciais e empresariais. Não é preciso lei nenhuma para isto, é uma empresa que presta serviços, ganha dinheiro e paga impostos.
Enquanto isso, iniciativas sócio-culturais independentes vêem-se obrigadas a fechar portas devido às elevadas taxas de direitos autorais aplicadas pelo ECAD, como relatado pelo blog da ONG Ação da Cidadania a propósito das exibições sem fins lucrativos para jovens programadas para o seu Cineclube criado com verbas do estado.
Não obstante a situação atual de debate sobre uma nova lei, um artigo recente da ARS Technica sugere que os Estados Unidos têm muito a aprender com o Brasil [en] no que diz respeito à punição de quem impede a utilização [“fair use” – direito de uso legítimo] de obras que já caíram e domínio público:
Brazil's proposal could be spun as something hostile to rightsholders, but it's not that simple. The law does provide protection for DRM [Digital Rights Management]; in general, it is illegal to remove, modify, bypass, or impair such anti-copying technology. It's just that rightsholders can't use DRM as a digital lock to give themselves more control over a work through technology than they have under the law. (…)
O professor canadense Michael Geist, que enfatiza a adequação das propostas de reforma introduzidas pelos legisladores brasileiros, resume [en] dizendo que a abordagem na proteção dos direitos autorais está devidamente equilibrada, e que não cai na máxima do “quanto mais melhor”. “Em outras palavras, as propostas brasileiras reconhecem o que o Supremo Tribunal do Canadá declarou há alguns anos – que excesso de proteção é tão prejudicial quanto a sua falta”.
Mesmo com um aparente apoio internacional das possíveis mudanças na lei brasileira, uma maior atenção à falta de diálogo do país com os tratados internacionais precisa ser considerada, como enfatiza Marília Maciel:
“Os tratados internacionais que o Brasil assina permitem que os países signatários incluam nas suas legislações nacionais limitações e exceções para uso educacional das obras intelectuais, para facilitar o acesso das obras aos deficientes, para se digitalizar os acervos de bibliotecas, por exemplo. Isso a nossa atual lei de direito autoral não permite. O Brasil tem padrões tão rígidos de proteção à propriedade intelectual que sequer reconhece as limitações e exceções que são facultadas pelos tratados internacionais. Eu acho que seria uma mudança bastante importante, que traria um equilíbrio muito maior entre interesses conflitantes.
No final da consulta aberta, o texto será reescrito baseado nas propostas feitas pelo público. Não existe uma data para o Executivo apresentar o projeto no Congresso.
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