Brasil: A internet livre entrou mesmo no cenário eleitoral?

Depois de muita discussão, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal aprovaram neste mês o projeto de reforma da Lei 9.096/95 (lei eleitoral) e da Lei 9.504/1997 (regulamentação das eleições), impondo novas regras para a campanha eleitoral de 2010, a maior do país, conhecida como “eleições gerais”, nas quais serão escolhidos o presidente da república, governadores de estados, parlamentares estaduais e federais.

Com a reforma, as regras que até então proibiam completamente a campanha eleitoral na internet mudaram – e algumas aberrações, sobretudo no tocante a blogs, foram postas em prática: agora, sites pessoais e de órgãos da mídia terão o mesmo tratamento jurídico, seguindo as mesmas regras de conduta e punição aplicadas a veículos tradicionais. Para que tenha vigência, será necessária a aprovação do presidente Lula, o que deverá ocorrer até o dia 2 de outubro.

Os partidos realizarão as campanhas de seus candidatos a partir de 5 de julho até a data da eleição, 3 de outubro de 2010. É durante esse período que atua a lei, regulamentando os meios de propaganda eleitoral, bem como as manifestações do eleitor por meio da internet. A Câmara federal, que se autointitula “A casa do povo”, divulgou por meio de seu site oficial de notícias, em letras garrafais que “Câmara libera internet nas campanhas eleitorais”, como se a utilização da web fosse uma dádiva concedida aos cidadãos pelos parlamentares. Da mesma forma fez o Senado.

O relatório conjunto da Comissão Justiça e Cidadania e da Comissão de Ciência Tecnologia e Inovação da câmara corroborou o entendimento do autor do projeto, o deputado federal Henrique Eduardo Alves, e não vê objeções em igualar as manifestações de usuários independentes na internet, com as propagandas eleitorais no rádio, TV e mídia impressa.

Infelizmente, o parlamento nacional perdeu uma excelente oportunidade de demonstrar ser o respaldo da sociedade brasiliera, mas optou em corresponder apenas interesses eleitoreiros, em detrimento da ampla liberdade de expressão. Sobre esse aspecto, Raphael Tsavkko criticou duramente no blog Trezentos a falta de sensibilidade do parlamento brasileiro, aproximando a reforma eleitoral das leis impostas  ao povo pelo regime militar dos anos 70. Ele comenta, destacando a contradição de que enquanto blogueiros não poderão se manifestar anonimamente, aqueles que doam dinheiro para campanhas eleitorais presevaram o direito de não revelarem suas identidades:

Eles brigam, nós, o povo, perdemos.

A tentativa de colar a idéia desta censura à uma suposta moralização é inútil, soa ofensiva quando os políticos corruptos e com ficha suja continuarão a concorrer em total liberdade. Existe liberdade para a bandalha, para o roubo, mas não para a livre expressão! Nós, palhaços, ops, eleitores, para piorar, sequer podemos sabem quem financia nossos candidatos! A piada da doação oculta permanece. OS parlamentares tem medo de dizer a verdade, de mostrar de onde vem o dinheiro de suas campanhas e pra quem irão, efetivamente legislar. Para nós é que não é, disto já sabemos!

O mesmo blog sugere o envio de e-mails em cadeia aos deputados responsáveis pela reforma, declarando a insatisfação com a medida restritiva de direito, listando para tanto seus endereços eletrônicos.

Por outro lado, as matérias surgidas na imprensa sobre a aprovação do projeto na última semana comprovaram que a sociedade não se lembra da característica ditatorial da Lei 9.504/1997, diploma legal que já havia equiparado internet e mídia convencional na mesma panela. Para refrescar a memória, esse marco da negativa das garantias individuais do brasileiro proíbe “difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos representantes” (Art. 45, inciso III) pela internet, sob pena de multa de até R$ 100.000,00.

O projeto atual além de não não afastar a equiparação de blogs pessoais e páginas de usuários comuns à veículos de informação de massa, inclui outras restrições, como o debate e entrevistas com candidatos. Caso cometa esse crime, o internauta poderá sofrer sanções penais e multas que variam entre R$ 5.000,00 e R$ 30.000,00. Na interpretação dos deputados, todo mundo que se manifesta sobre algum candidato é um perigo iminente, devendo ser severamente vigiado. Além disso, se criticar um candidato, o blogueiro deve dar direito de resposta, o que causou estranheza a muitos internautas, dentre os quais Rogério Martins, do blog Marginal Conservador:

A Câmara manteve a liberdade de blogs, redes sociais, sites e programas de mensagens instantâneas (até o msn neguinho quer vigiar!), mas com ressalvas. Ressalvas um tanto inusitadas: o direito democrático de cada blogueiro em expressar sua opinião por um ou outro candidato está liberado, mas caberá o direito de resposta e a proibição do anonimato em artigos e reportagens. […] Direito de resposta para blogs?!?! Ora, os blogs estão entre os meios mais democráticos da internet, pois o “direito de resposta” já é algo inerente a eles, na ideia dos comentários que qualquer leitor pode fazer após a leitura das postagens. É isso que torna a internet 2.0 única. Aqui, o leitor também tem vez: cada post tem espaço para comentários, elogios, críticas, “direitos de resposta” etc. E há também a flexibilidade: podemos sempre “corrigir” textos já escritos, acrecentando algo ou cortando eventuais tropeços.

O medo dos parlamentares de perderem o controle sobre a livre manifestação do cidadão está expresso no artigo 57-D, inciso I, do projeto, que proíbe a realização de matérias que envolvam pesquisas eleitorais sobre a campanha e o candidato, que destacamos:

Art. 57-D – É vedado aos provedores de conteúdo e de serviços multimídia, bem como às empresas de comunicação social na internet, nos conteúdos disponibilizados nas páginas eletrônicas:

I – transmitir, ainda que sob a forma de entrevista jornalística, imagens de realização de pesquisa ou qualquer outro tipo de consulta popular de natureza eleitoral em que seja possível identificar o entrevistado ou em que haja manipulação de dados;

Em outras palavras, além de serem proibidos de comentar sobre qualquer candidato, nenhum meio de comunicação online, incluindo blogs, poderá citar resultados de pesquisas, ainda que com conteúdo crítico ou jornalístico. No artigo que o internauta escrever não poderão constar o nome dos candidatos, seus partidos, coligações, imagens, vídeos ou outros meios que o identifique. Para Arturios Maximus, do blog Visão Panorâmica, a conduta dos deputados revela o receio de terem suas vidas devastadas com a verdade pessoal do internauta:

A fantasia de honradez de hombridade e de progressividade longamente cultivada diante das lentes da televisão e dos gravadores de jornalistas subservientes e tolhidos por empresas dependentes de publicidade e de financiamentos públicos; de repente se torna a carantonha feia e asquerosa, corroída pela corrupção e por toda sorte de vícios e ilicitudes cometidos ao longo de décadas de dissimulação estudada, tolerada e incentivada. Do dia para a noite o “nobre senador” ou o “nobre deputado” vê sua verdadeira imagem de escroque oportunista exposta aos quatro ventos para quem quiser ver; bem ali, ao alcance de um simples clique do mouse.

O  deputado federal Flávio Dino, co-autor do polêmico projeto, em entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, dá uma aula de retórica vazia, reconhecendo a igualdade entre internet, rádio e TV, mas ao mesmo tempo negando que tenha reconhecido, pois:

A internet não é igual a rádio e televisão, mas é também rádio, é também televisão. É também equivalente a jornal e a revista. Então, o regime jurídico tem que ser também misto, tem que ser também híbrido. A equiparação absoluta que nós fizemos foi apenas em relação aos debates. Ou seja, se é feito um debate em um portal comercial e em uma rede comercial de TV há que se observar as mesmas regras que são democráticas. São as regras de garantir voz para todos”.

Marcelo Träsel, em seu blog homônimo, faz uma análise dos problemas em se equiparar mídias tradicionalmente vinculadas ao mercado e os internautas inviduais, salientando que a natureza privada da internet não permite o mesmo modo de tratamento que canais de televisão, rádio e imprensa convencional:

O maior problema é a comparação da Internet com rádio e televisão, completamente falaciosa. As regras para propaganda e jornalismo em rádio e televisão são mais restritivas por se tratarem de concessões públicas. A Internet não exige uma concessão para que qualquer pessoa ou instituição possa se manifestar, portanto não pode seguir as mesmas regras de rádio e televisão. Nas redes de computadores, os candidatos podem ocupar espaços livremente, sem depender da chancela de um jornalista ou empresário de comunicação. Assim, as possibilidades de manipulação por parte do poder econômico são muito menores — embora existam.

O deserviço oferecido pelo legislativo à imprensa e a WEB 2.0 alcança proporções impensáveis para um século XXI livre de amarras ditatoriais. O internauta solitário foi legalmente obrigado a se comportar como um empresário do setor das comunicações, impedido de analisar a postura de candidatos e o andamento das eleições, cerceando-lhe o direito constitucionalmente garantido de expressar-se. Mais uma pá de terra sobre o frágil Estado Democrático de Direito brasileiro.

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