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Brasil: negros podem dirigir carros de luxo?

Categorias: América Latina, Brasil, Direitos Humanos, Etnia e Raça, Mídia Cidadã, Protesto

Nas últimas semanas de agosto, a discussão sobre o racismo e preconceito na sociedade brasileira foi trazida à tona por um evento que causou um sentimento de revolta por todo o país. Januário Alves de Santana, um homem negro de 39 anos foi espancado pelos seguranças de uma das maiores lojas de departamento no Brasil enquanto esperava por sua esposa e seus filhos no estacionamento. Ele foi acusado de tentar roubar seu próprio carro [1]. Os seguranças alegaram que, sendo Januário um homem negro, ele não teria condições de possuir um Ford EcoSport.

Picture by Juarez Silva Jr.

"Proibido para negros" Por Juarez Silva Jr.

Rachel Glickhouse, em Adventures of a Gringa [2] [Aventuras de uma Gringa, en], descreve precisamente o decorrer dos eventos do dia 07 de agosto como contado por Januário. Ela diz [3]:

Standing outside of the car, he noticed more suspicious men approaching him. Then one–who was actually a security guard–approached him and took out a gun. He attacked Januário without identifying himself, and Januário didn't know if it was a mugger or a cop. While they struggled, passersby called for help, and Januário thought he was saved. Several security guards from Carrefour approached, and he explained that it was a misunderstanding–he was not in fact trying to steal the motorcycle nearby. The security guards grabbed him and took him inside to a small room to “work out” what had happened. “So,” they said, “you stole an EcoSport and were trying to take a motorcycle, too?”

The five security guards then proceeded to beat Januário senseless, in what the original report called “a torture session,” hitting, punching, headbutting, and pistol-whipping him, knocking out his teeth and leaving him bleeding heavily. Januário says he tried to explain that the car was his, and that his baby daughter was inside while his family was shopping. His attackers ignored him. “Shut up, n*****. If you don't shut up, I'll break every bone in your body,” one of them yelled. They laughed when he insisted it was his car. The beating lasted around twenty minutes, before the police arrived.

Esperando fora do carro, ele avistou mais homens suspeitos se aproximando. Então um dos homens – que na verdade eram seguranças – aproximaram-se dele e tiraram uma arma. Ele atacou Januário sem se identificar, e Januário não sabia se o tal homem era um ladrão ou um policial. Enquanto brigavam, pessoas que passavam por ali pediram ajuda, e Januário achou que ele estava salvo. Vários seguranças do Carrefour se aproximaram, e ele explicou o mal-entendido – que ele não tentou roubar a motocicleta próxima a ele. Os seguranças o agarraram e o levaram a uma pequena sala para “resolver” o que tinha acontecido. “Então”, eles disseram, “você roubou um EcoSport e tentou roubar uma motocicleta também?”

Os cinco seguranças então continuaram a golpear o Januário  sem sentido, o que o relatório original chamou de “sessão e tortura,” batendo, socando, cabeceando, e dando coronhadas nele, acertando seus dentes e o deixando sangrando bastante. Januário  disse que tentou explicar que o carro era seu, e que sua filha estava dentro do carro enquanto sua família fazia as compras. Os agressores o ignoraram. “Cale a boca, pr***. Se focê não calar a boca, vou quebrar todos os ossos do seu corpo,” um deles disse. Eles riram quando Januário insistiu que o carro era dele. O espancamento durou em torno de 20 minutos, antes da polícia chegar.

E continua a explicar, ao dizer que “a tortura ainda não tinha acabado”, até mesmo após a chegada da polícia:

One of the military policemen, by the name of Pina, didn't buy Januário's “story.” “You look like you've been in jail a couple of times. Come on, fess up, it's ok,” the police officer said. Another police officer didn't believe he was a security guard, and started quizzing him about security rules. Finally, the police went to Januário's car and confirmed it did in fact belong to him and his wife. His family was there, shocked to see him bleeding with cracked teeth, and his daughter was still asleep in the car.

Um dos oficiais de polícia, conhecido como Pina, não acreditou na “história” do Januário. “Você deve ter duas passagens na cadeia. Vamos lá, confessa, ta?” o oficial disse. Um outro policial não acreditou que Januário era de fato segurança, e começou a questioná-lo sobre regras e segurança. Finalmente, os policiais foram até o carro de Januário e conformaram que, de fato, o carro pertence a ele e sua esposa. Sua família estava lá, chocada ao vê-lo sangrando com os dendes quebrados, e sua filha continuava dormindo no carro.

A polícia deixou Januário sem oferecer ajuda ou chamar uma ambulância. Ao ser levado ao hospital por sua família, Januário foi tratado por choques e lacerações. Desde então, ele já perdeu 8 kg, sofre de insônia, não pôde voltar ao trabalho, e, na última quinta-feira, foi operado para corrigir uma fratura óssea na face. A família registrou queixa com a polícia da região, e de acordo com a versão policial, seu espancamento foi consequência de um “tumulto” e “briga entre alguns clientes”. O Carrefour emitiu uma nota lamentando o mal-acontecido e dizendo que vai cooperar com as investigações [4]. Januário planeja processar ambos, tanto o supermercado quando o Estado de São Paulo, e vender o carro que ainda paga as prestações de R$789, divididas em 72 vezes.

Na medida em que o caso obteve grande repercussão por todo o país, a maioria das pessoas simpatizou com Januário. O blog Censurado [5] aponta muitos outros casos [6] de preconceito contra negros cometidos pela segurança dessa mesma loja de departamentos, e ironicamente pergunta aos seus leitores:

Queria um conselho dos meus leitores. Se um dia eu precisar comprar, sei lá, um shampoo no Carrefour, devo levar um amigo branco junto comigo?

Maria Frô [7] replicou a notícia original do AfroPress [8] em seu blog, adicionando um título diferente à notícia que parafraseia o livro “Não Somos Racistas” do jornalista Ali Kamel. O título do post é [9]:

É, segundo Kamel, não somos racistas. Só quase assassinos.

O blog Pão e Rosas [10] repudiou veementemente [11] o caso contestando o mito da democracia racial brasileira:

Enquanto os discursos de intelectuais, políticos burgueses e dos meios de comunicação afirmam veemente “Não somos racistas”, vem à tona um caso escandaloso de como o racismo se reproduz nas formas mais violentas e repugnantes. Todo a falácia da democracia racial cai por terra frente a casos como este – e poderíamos listar tantos outros que ganharam repercussão e depois foram esquecidos, na maioria das vezes marcados pela impunidade.

Juarez Silva Jr., do Blog do Juarez [12], segue essa linha de pensamento e também contesta o mito de que o Brasil das misturas culturais seja uma democracia racial pacífica:

é verdade… , quando o negro sai do seu “esteriótipo  e ‘lugar’ social ” ele “paga o preço”, afinal se ele não tivesse um carro bacana, talvez nada disso tivesse acontecido não é mesmo ???? , cansado de ter problemas por sua situação social não condizer com o “esperado” pela sociedade, a vítima já pensa em vender o “carro problemático”  […]
Deus me livre de por as rodas do meu vistoso Adventure no estacionamento dessa rede…, BOICOTE JÁ.

"Racist Carrefour", a demonstration against racism on the cars' windows in the Carrefour's parking. Photo by @berlitz on Twitpic [13]

Manifestação contra o racismo no estacionamento do Carrefour. Foto por @berlitz no Twitpic

No Geledés Instituto da Mulher Negra [14], muitas pessoas lamentaram essa notícia [15] e encheram a caixa de comentários com ideias de revolta. Por exemplo, Ayraon diz:

Só no Brasil se acha que o racismo é velado. Velado nada! Só não vê quem não quer, ou seja, o povo brasileiro iludido por uma visão deturpada de si mesmo. “Somos mestiços!” diz um, “Não existe preto ou branco” diz outro na hora que esse preto inexistente diz sofrer racismo. Lá fora, quem conhece o Brasil, não consegue entender como esse país pode, por tanto tempo, esconder seu racismo doente. Aqui dentro, vivemos na insanidade coletiva: brancos acham que racismo não existe, que tá na cabeça dos pretos (que, segundo alguns pretos e brancos, não existem), negros dizem que o racismo brasileiro é “velado”; e muitos aceitam essa situação (alguns até dizendo nunca terem sofrido racismo, mesmo sendo alvo dele todo o dia). A história do bahiano me deixa triste , por que ela v ai se repetir, e se repetir, e se repetir sem que façamos nada. Ou iremos fazer algo?

Respondendo à pergunta acima, as mobilizações já começaram. Houve uma manifestação em 22 de agosto e, de acordo com o Instituto Geledés, um protesto maior [16] contra o supermercado acontecerá em 5 de setembro.

A questão racial é muito complexa para países que já foram colônias de Estados desenvolvidos e assombrados pela escravidão; muito  preconceito permanece em suas sociedades contemporâneas. O Brasil é um lugar marcado pela escravidão violenta de negros africanos que durou mais de 300 anos e que foi, de certo modo, um braço do quadro econômico durante a era colonial. O racismo sempre esteve ligado à relações sociais no país. Os negros hoje herdaram este estigma social e sofrem racismo em vários aspectos do cotidiano. Mas isso é assunto para ser trabalhado mais detalhadamente em outro post.