Brasil: Escritores e poetas indígenas na blogosfera

Há dentre os índios blogueiros do Brasil um grupo especial de escritora e poetas indígenas. Apesar de alguns antropólogos e lingüistas desacreditarem da noção de literatura indígena, traçando a origem deste conceito à cultura ocidental, particularmente a partir de Aristóteles, alguns índios brasileiros de origem ameríndia, apesar de também mestiça, se auto-declara como escritores da literatura indígena. Não só isso, mas estão publicando livros, tendo suas obras traduzidas para diversas línguas e blogando muito!

Foto de Daniel Munduruku

Foto de Daniel Munduruku

O maior expoente desde movimento de literatura indígena é Daniel Munduruku, escritor indígena originário da Amazônia e residente em São Paulo, com mais de 30 livros publicados e diretor do Inbrapi, entidade criada em 2001 com o objetivo de defender os conhecimentos tradicionais indígenas da biopirataria e exploração por terceiros. Daniel tem um website bilíngüe dedicado ao seu trabalho literário, na maior parte infanto-juvenil, mas no seu blog ele aproveita para chamar atenção para notícias importantes para os povos indígenas e apoiar causas que o inspiram. Por exemplo, neste Dia Internacional da Mulher, Daniel fez uma bela declamação em prosa para as companheiras:

Penso compulsivamente nas mulheres. Não se trata de um olhar desejoso, mas corajoso.
Corajoso porque, confesso, morro de inveja delas: da coragem, da obstinação, da intuição, do olhar sempre distante e sempre presente; da fortaleza e da fraqueza que revelam.
Sei que poderão pensar que isso é humano, presente em homens e mulheres. Eu discordo. Conheço o masculino, convivo com ele em mim e sei que por mais esforço que faça percebo um lobo faminto, sem escrúpulos e sem medida.
Acho que o homem masculino devia ouvir mais as mulheres. É claro eu alguns dirão que elas falam demais. Isso também é justo e certo, mas talvez falem muito por terem sido ouvidas tão pouco em passado recente e terem, por isso, que gritar para se fazerem ouvidas. Por isso tenho a impressão que nós homens, precisamos exercitar o sagrado direito de fazer silêncio, ouvir, ouvir e ouvir.
Outros oponentes dessa teoria dirão que, assim, viraremos mulheres. Rebato o argumento dizendo: é disso que estou falando!
Ao menos hoje temos que calar para deixar nossa intuição falar. E minha intuição diz que preciso sentir a dor do outro pra compreendê- lo em sua dimensão humana.
Hoje quero ficar assim, miudinho, pequenininho, quietinho só para ver a magnitude do ser – mulher falar coisas que preciso ouvir.

Falando em mulheres, o movimento da literatura indígena é magnificamente bem representado por Eliane Potiguara, escritora, professora e ativista indígena que em 2005 foi indicada para o Prêmio Nobel da Paz (Projeto Mil Mulheres do Mundo). Eliane, cuja origem é paraibana mas vive no Rio de Janeiro, tem um website próprio, aonde divulga sua obra literária, mas também mantém o blog como parte de seu trabalho na rede GRUMIN de Mulheres Indígenas, da qual é fundadora e coordenadora. O blog é um instrumento de comunicação para as mulheres indígenas e traz um misto de literatura, oportunidades e chama atenção para episódios relevantes da luta das mulheres indígenas.

Recentemente, Eliane postou um belo texto sobre a literatura dos excluídos que expôs em um evento:

A literatura dos excluídos ainda é uma pele de Boto que foi destruído ao longo dos séculos e que está esquecido e abandonado no fundo dos rios a precisar renascer_ ardentemente_ com a força da alma da natureza e humana. Mas essa natureza está envolta nas amarras dos séculos de dor, do obscurantismo, dos grandes enigmas e contradições da própria existência, do divino e do amor. A literatura ainda é um segmento cultural e político que não consegue chegar na totalidade das camadas menos privilegiadas social e economicamente do Brasil e do mundo.

Esse Boto Literário precisa ser salpicado com as lágrimas emocionadas da Natureza, muitas desvairadas lágrimas. Aí sim, essas feridas do mundo­_ que as mulheres indígenas as eternizaram com seus beijos de cura, bálsamos históricos, histórias não contadas e adormecidas no fundo do rio ou dos oceanos, essas sim, _ serão eternamente curadas, assim como o Boto literário.

O mais recente livro de Eliane Potiguara

O mais recente livro publicado por Eliane Potiguara

Outro escritor indígena muito atuante é Olivio Jekupe que tem uma trajetória de vida incrível, tendo superado diversos obstáculos para conseguir cursar filosofia e firmar-se como escritor que hoje é, com diversos livros publicados e traduções para o italiano. Olivio traz fortemente a questão de sua origem mestiça, o que é a realidade de muitos índios brasileiros:

O mestiço é o mais discriminado nesse país, pois tanto eu quanto muitos no Brasil sofrem. Sei que sou mestiço e não tenho culpa de ser, e a miscigenação existe desde a chegada dos portugueses, não sou o primeiro índio não puro e não serei o último. Mesmo não sendo índio puro, quero dizer que tenho orgulho de ser o que sou e não podemos ter vergonha, meso que a sociedade nos discriminem.

No seu blog, Olívio traz matérias sobre sua literatura indígena, por exemplo, a interessante história da origem indigena do Saci, personagem do folclore brasileiro consagrado por Monteiro Lobato como um negro perneta, e informa que o verdadeiro Saci tem duas pernas!

Imagem do Saci Pererê de Monteiro Lobato. Imagem de André Koehne sob licença do Creative Commons

Imagem do Saci Pererê de Monteiro Lobato. Imagem de André Koehne sob licença do Creative Commons

Não sei se já ouviram falar que o Saci na verdade é um personagem indígena e que tem duas pernas, é provável que não ouviram ainda, pois eu fui o primeiro que escreveu dois livros que fala sobre esse personagem, tenho dois livros com o título – Ajuda do Saci, da Editora DCL, e o outro que se chama – O Saci Verdadeiro, da Editora UEL. Nos meus livros eu tento mostrar que o personagem tem duas pernas e é um índio, diferente da visão de Monteiro Lobato.
E sei que já tem documentários sobre esse tema, e muitas matérias que falei para jornalistas, e até teses de mestrado sobre o tema, como fez a escritora Graça Graúna onde ela fala do meu livro, O Saci Verdadeiro.
É importante que todos possam conhecer esse personagem onde tento mostrar o que nas Aldeias Guarani é comum ouvir sobre ele.
Sei que um dia minhas histórias serão tão conhecida que serei convidado para dar palestras em vários cantos do Brasil, de Norte a Sul do Brasil.

Olívio menciona Graça Graúna que é outra escritora indígena, poetisa, da região Nordeste do Brasil, de origem do Rio Grande do Norte mas residente em Pernambuco, tão ativa na vida quanto na blogsfera. Seu blog é premiado, muito visitado e traz um misto de notícias sobre literatura indígena e maravilhosos trechos de sua poesia. Dentre tantas, colhi uma poesia para vocês saborearem, que é também flor:

aos poetas Carlos e Sônia Brandão

… que Ñanderu* acolha
as pedras da nossa canção.
Que seja pedra enquanto leveza
o sinal: sem poesia os tempos não existirão
Graça Graúna, Nordeste do Brasil, 12 de março de 2009.

* Ñanderu em guarani, significa Nosso Pai; o Grande Espírito, o Criador.

Para quem quiser conhecer mais sobre literatura indígena, vale visitar o blog do NEARIN, Núcleo de Escritores e Artistas Indígenas do INBRAPI. O blog é organizado com o objetivo de oferecer um espaço para o debate de idéias em torno da literatura e arte indígena. Traz uma diversidade de notícias sobre o tema, relatando eventos ocorridos em várias partes do país e também uma lista de autores e livros de literatura indígena. Para quem estiver em São Paulo neste dia 19 de Abril, Dia do Índio, vale a pena conferir o I Sarau das Poéticas Indígenas, na Casa das Rosas, Av. Paulista, 37, a partir de 15 hs.

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Convite para o I Sarau das Poéticas Indígenas.

Ao final deste fascinante tour à volta da blogosfera indígena brasileira, vale perguntar: Resta alguma dúvida a respeito da existência de uma literatura indígena legítima no Brasil?

No primeiro artigo desta série, nós introduzimos a blogosfera indígena brasileira. No próximo, vocês irão descobrir como os povos indígenas brasileiros vem usando a blogosfera para lutar por seus direitos.

24 comentários

  • Antônio Pereira

    A ÚLTIMA BANDEIRA DE FERNÃO DIAS
    (Do livro “Aconteceu no Velho São Paulo”, de Raimundo de Menezes, Coleção Saraiva. Ano provável da publicação: 1954)

    Naquele luminoso sábado, 21 de julho de 1674, a pequena vila de São Paulo, amanhecera festiva. Os sinos badalavam alegres. Toda a gente, principalmente os “homens bons” com seus trajes domingueiros, os seus gibões mais vistosos, veio para as ruas. E todos começaram a seguir para o largo de São Bento. Em frente da igreja foi juntando gente e dali a pouco estava tudo atopetado, tão atopetado que não cabia mais ninguém. Que festa era aquela? Que acontecera de tão extraordinário que formara tamanho ajuntamento, com tamanha bulha? Não havia quem não comentasse a ocorrência notável: Fernão Dias Pais, o sertanista de quatro costados, com larga fama de intrépido e peitudo, apesar dos seus 66 anos bem vividos, bem mortificados, se dispusera a organizar e partir numa grande bandeira, a maior de todas, levando consigo um punhado de homens afoitos, para ir buscar, lá no sertão inóspito, as esmeraldas fulgurantes de que tanto se falava na época.

    No largo, cheio de sol e de alegria, um mundo de gente conhecida. Em primeiro lugar, os componentes da bandeira: Matias Cardoso, o imediato; Garcia Pais, o filho amado de Fernão Dias; Borba Gato, o genro querido; Francisco Dias, o sobrinho; o capitão Manuel de Góis; o capitão Baltazar da Veiga; o capitão João Bernal… E aquele ali, mal-encarado, fisionomia pouco comunicativa? Quem é? Não perceberam? É José Dias, o filho bastardo. Dará muito trabalho, mais tarde… E lá longe, no fundo do largo cheio, os índios mansos, os mamelucos, alguns negros e os demais componentes da entrada: mais quarenta brancos. Ouvem, com atenção, a missa solene, que está quase no fim. São mais de nove horas da manhã gloriosa…

    Fernão Dias ouviu tudo da índia. Escutou-a com a maior atenção. Pedro Taques conta o resto do que sucedeu: Fernão prontamente se armou: e, sem mais companhia, veio examinar as vozes dos agressores que ainda existiam naquele ajuntamento. Retirou-se para casa, e, com as cautelas e silêncio que pedia o caso, passou o restante da noite. Amanheceu o dia; e comunicando a gravidade da matéria a seu filho legítimo, aos oficiais, aos parentes e aos amigos, procedeu à prisão dos culpados; e fazendo-os separar uns dos outros, se averiguou a verdade da capital culpa, que recaiu no filho mameluco.”

    A sentença

    Eram seis horas da manhã, daquela manhã fatídica, quando a bandeira inteira se reuniu em frente da choça do chefe. Ninguém sabia do que se tratava. Ouvira-se, muito vagamente, falar numa conspiração e que havia muita gente presa. Mas, ignorava-se o principal: que José dias era o mentor da conspirata! Que o bastardo tramara, e que trama diabólica! E quando se ficou sabendo… Fernão apareceu. Estava tresnoitado. A fisionomia era de sofrimento. As olheiras, fundas. A voz, porém, firme, embora ligeiramente trêmula. Pareceu mais velho. Não conseguia esconder a amargura que o afligia. Começou a falar… Contou tudo, tintim por tintim, do que acontecera durante a vigília, do que ouvira dos conspiradores. Mandou, em seguida, que fossem apresentados os presos aos demais componentes da bandeira. Todos ficaram horrorizados. Não houve quem não tivesse uma palavra de recriminação, principalmente vendo o filho tramando contra a existência do próprio pai! Entretnto…

    O velho Fernão, trêmulo de raiva, prosseguiu na sua dramática narrativa. E houve momento em que, depois de ligeira pausa, declarou, diante do espanto maior de todos, o que desejava fazer, que castigo pretendia impor a crime tão nefando. – “Vou mandar enforcar a todos, sem exceção de nenhum!” Houve um silêncio arrepiante, um silêncio de morte. Foi quando Borba Gato indagou, ansioso: – “E José Dias também?” A resposta veio seca, ríspida, dura: – “Também… Aqui não tenho filhos. Sou o chefe da bandeira. Como chefe, eu sou o juiz. Devo castigar os criminosos. Ele, como criminoso, não tem pai. Eu, como juiz, não tenho filho!” A execução ficou marcada para o dia seguinte, ao amanhecer. Pois bem, no dia seguinte, ao amanhecer, Fernão Dias escutou um barulho estranho de vozes ao redor da choupana… Foi ver, e soube, então, de outra revolta…

    A execução

    Quando Antônio Bicudo e Garcia Pais informaram ao Governador das Esmeraldas que os componentes da bandeira estavam rebelados contra a sua sentença, impondo a pena capital aos conspiradores, Fernão Dias não vacilou um instante. Declarou-se disposto a tudo: – “Haja o que houver, minhas ordens serão executadas. Dominarei os amotinados. Ainda tenho comigo cinco ou seis amigos. Conto com eles.” Enquanto isso, foram chegando os rebelados. O bravo bandeirante não arredou o pé. Aguardou-os com firmeza… E, quando eles se reuniram ao seu redor, interpelou-os, afoito: – “Que quereis?” – “Que não enforqueis ninguém!” – gritou um mais corajoso. – “Minhas ordens serão cumpridas. Ainda tenho um barril de pólvora.” – “Apelamos para vossa benevolência…” – Fernão Dias acalmou-se diante daquela palavra “benevolência”, e inquiriu, menos trêmulo. – “Reconheceis, então, que tenho razão, que sou o chefe?” Uma voz reboou numa resposta única: – “Reconhecemos!” – “Pois bem, ouvi, perdôo a todos os criminosos! Com uma condição, porém. Que todos vos retireis, imediatamente de minha presença. Não vos quero ver…”

    Um grito de alegria ecoou ao longe. Borba Gato aproximou-se e indagou: – “Todos?” – “Não! Todos, não. Mandarei enforcar um apenas: o José!” José Pais ouviu a sentença terrível e chegou-se chorando. Caiu de joelhos: – “Perdoa-me, pai! Não fiz por mal.” – “Não há perdão para um miserável como vós, José Pais! Traidor! Traidor do próprio pai! Morrereis na forca!” – “Vou-me embora para São Paulo e não volto mais aqui, pai!” – “Não! Morrereis para exemplo dos demais! Borba Gato, já determinei: trazei a corda!”

    A corda veio. Amarraram-na ao pescoço do condenado. Suspenderam o corpo. – “Perdoai-me, pai!” – Fernão Dias ditava implacável as ordens rudes: – “Amarrai agora a corda no galho!” O momento era altamente dramático. Ninguém ousava dizer uma palavra, tecer um comentário. – “Pai, tende piedade!” – “Soltai o corpo! Rápido!” E no ar balançou tragicamente, tetricamente, olhos esbugalhados, língua de fora, rosto congesto, a figura hedionda de José Dias” – “Está morto! Que o castigo sirva de lição! Quem me trair já sabe que fim terá, mesmo que seja meu filho…”

    Duas lágrimas começaram a rolar, grandes, redondas, rebrilhantes, no rosto enregelado do estóico bandeirante. Vieram descendo vagarosamente e foram aninhar-se nos fios brancos de sua barba maltratada. Pelas fisionomias rudes dos bravos sertanistas, desenhava-se uma máscara de emoção.

    Vupabuçu, o fim da aventura

    Logo em seguida ao enforcamento espetacular de José Dias, no dia seguinte ao daquela manhã memorável, a bandeira de Fernão Dias Pais prosseguiu no seu melancólico roteiro em busca de Vupabuçu [lagoa do cume da serra de São Simão, na cordilheira dos Aimorés, Minas Gerais], que devia ficar muito longe. Mas, pouco importava. Vupabuçu era o ponto final da longa aventura. A miséria continuava a mesma, senão pior. Aquele bando roto, esfomeado, esquelético, desesperançado, ia andando, arrastando-se ao Deus dará, com esforços inauditos, verdadeiramente sobre-humanos. E nada das lendárias esmeraldas aparecerem, nada de serem encontradas as tão ambicionadas pedras verdes…

    Fernão Dias, porém, trazia ainda a alma fagueira de esperanças. Era o único. Quanto aos demais, acompanhavam-no por acompanhar… O próprio filho e mesmo o genro, apesar de tudo, por mera lealdade, e nada mais. Ninguém acreditava na existência das tais pedras procuradas. Tudo simples ilusão. Um dia, Vupabuçu surgiu no horizonte. Que decepção! Que dura decepção! A lagoa tão falada, tão discutida, não tinha a beleza que a lenda apregoara. Era aquilo Vupabuçu? “Não havia rios verdes, areia verde, pássaros verdes. Nem luar verde pelo reflexo verde da serra. Ao contrário. Tudo áspero, sombrio, melancólico. E a lagoa triste, de águas paradas, no meio de um vale ainda mais parado e mais triste.”
    http://www.pitoresco.com/historia/rocha06a.htm

    O Borba, ora o Borba. Qual Hildebrando Rato, Borba Gato – dizem – andou matando umas pessoas (fora milhares de índios, que não eram considerados pessoas). Isso foi lá por 1.650. Contam que, ao voltar para casa, depois de ficar 20 anos escondido no sertão, não foi nem reconhecido pela mulher dele. Era acusado de homicídios. O sogro, o Fernão, não deve ter gostado. Não sei se a mulher dele foi para a televisão contar as maracutaias e nem escondeu as vergonhas com a nossa bandeira. Afinal, eram bandeirantes.

    http://www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/a_estatua.htm

    Manoel de Borba Gato, foi um bandeirante paulista do século XVII. Tomou parte ativa da grande bandeira chefiada pelo seu sogro: Fernão Dias Paes. O objetivo desta bandeira era encontrar esmeraldas. Entregou a Borba Gato os destinos da expedição quando teve pressentimento que iria morrer. Viveu praticamente nas selvas, durante 20 anos, entre 1680 e 1700. Dom Rodrigo Castelo Branco, nobre espanhol, enviado para que vistoriasse as minas de ouro. No encontro de Borba Gato com Dom Rodrigo houve grande discussão, pois ambos eram de gênio impetuoso. Dois pajens de Borba Gato, ao presenciar a discussão violenta, temeram pela vida do bandeirante, e acabaram por matar o nobre espanhol. Borba Gato foi responsabilizado pela morte de Dom Rodrigo e foi obrigado a evadir-se do sertão, refugiando-se na casa do seu tio, às margens do rio Doce. Foi fundador dos povoados de Caeté e Sabará, mais tarde conseguiu por intermédio de sua família e amigos ser indultado do crime que lhe era imputado. Agradecido por ter sua liberdade reabilitada, revela ao Governador a localização das minas de ouro que descobrira; assim pode retornar ao convívio com seus familiares. O governador nomeou-o Guarda-Mor, da região das Minas, com a função de recolher para a metrópole os quintos de ouro, conforme mandava a lei; apesar de uma vida de sacrifício e problemas, seus dias terminaram em paz.
    http://www.e-biografias.net/biografias/borba_gato.php

  • Antônio Pereira

    (Errata)

    Mandou, em seguida, que fossem apresentados os presos aos demais componentes da bandeira. Todos ficaram horrorizados. Não houve quem não tivesse uma palavra de recriminação, principalmente vendo o filho tramando contra a existência do próprio pai! Entretanto…
    http://www.pitoresco.com/historia/rocha06a.htm

    • Antônio Pereira

      O sacrifício de Maria Betim

      Assim era Vupuabuçu. E, apesar de ser assim, Fernão Dias fez questão de acampar ali mesmo. Não sabia que perigo o esperava. Mal tinham acabado de acampar, eis que rumores estranhos se verificaram. Quem era? Nada mais, nada menos que um portador que, a toda pressa, chegava de São Paulo. E o portador trazia um mundo de coisas preciosas para todos: sal, roupas, mantimentos, fazendas secas! Os cargueiros vinham cheios, cheinhos, transbordantes… Foi uma alegria doida! Tudo aquilo fora obra de D.Maria Garcia Rodrigues Betim. Estava em São Paulo quando soubera das penosas aperturas em que se debatia o esposo, e não teve dúvidas. Para conseguir o dinheiro que não tinha, pôs-se “a vender a prata e o ouro que restavam de sua casa”.

      Observem que sacrifício tão grande para uma mulher! Mas não para uma mulher da marca de d. Maria Betim, estóica até o fim, como muito poucas. “Não perdoou as jóias de adorno das próprias filhas. E assim, liberal e discreta, d. Maria não duvidou em estragar o seu cabedal para que o marido conseguisse uma ação em que estavam empenhados a sua honra, o seu crédito, e o seu nome.”, escreveu Pedro Taques. Dispusera de tudo: das suas jóias e das jóias de suas filhas! Após sete anos de espera, não desanimara ainda. Tão firme, tão crente como no dia da partida, como naquela manhã de sábado, 21 de julho de 1674, D. Maria Betim mandou ao Governador das Esmeraldas um bilhete, com este recado:

      “Vendi a nossa terra da Mumbuca para o Juca Proença. Com o dinheiro comprei mantimentos e algum pano de algodão que aí vai. Não deu o dinheiro para mais. Vendi por isso os cinco escravos que ficaram comigo. Com o dinheiro comprei sal, que está pela hora da morte, toicinho e azougue. Faltou ainda um pico para pagar o açougue. Vendi então as minhas peças de ouro e os brilhantes. O par de bichas, que veio do Reno, ficou com d. Branca. Comprei, com o dinheiro, a pólvora que está na bruaca do pêlo. Mas achei que era pouca. Vendi a nossa copa de prata, que rendeu bem. Enchi mais duas bruacas de pólvora. Faltava a miudeza, roupa e cobre. Vendi, por isso, as jóias de nossas filhas. A vila só falava de vós. Há gente que não acredita mais nas pedras. não faz mal! Quanto a mim, d. Fernão, só vos peço uma coisa; é a mesma que vos pedi no dia da partida; não volteis sem as esmeraldas!”

      Fernão Dias ficou comovido, quase até as lágrimas. E, como ele, os demais companheiros de jornada. E, como ele, Garcia Pais e Borba Gato. No dia seguinte, mais afoitos ainda, arremessaram-se na tarefa árdua e espinhosa…

      Com as pedras, uma desgraça

      Todos haviam acordado mais cedo que de costume. Madrugaram, animados de mais ardor. E começaram a cavoucar o morro. Cavoucaram a manhã inteira. Era quase meio-dia e o sol dardejava alto, quando um grito ecoou mais forte, lá distante:

      – “ESMERADAS! ESMERALDAS!”

      Logo um tiro seco e surdo reboou de quebrada em quebrada. Não houve quem não acorresse. Fernão Dias, “com os seus cabelos brancos, com as longas barbas tombando-lhe emaranhadas pelo peito,” parecia transtornado. Gesticulava, falava, mostrava as pedras, sorria num alegrão. A algazarra tornou-se ensurdecedora. Novos tiros furaram o silêncio dos ermos. E foi um tal de queimar pólvora, abusivo mesmo, do que, apesar da sua falta, não se fez nenhuma economia. A alegria era doida, era entontecedora. Ninguém se cansou de olhar, de examinar, e as esmeraldas passavam de mão em mão. Eram muitas, numerosas, todas verdes, cor do mar, rebrilhantes, fascinantes. A vitória fora imensa. Quanta trabalheira, quanto sofrimento, quantas vicissitudes naqueles sete anos. Sete anos que pareceram séculos! Naquela noite ninguém dormiu no acampamento, e quem dormiu sonhou com uma só coisa, com as esmeraldas, com as pedras verdes…

      Naquela noite, porém, como remate à alegria que a todos endoidecera, uma tragédia acontecia: Fernão Dias caíra gravemente enfermo. Caíra tomado de febres. Era a carneirada. Era a terçã. O filho e o genro acudiram, ainda temerosos. Correram a preparar a beberagem. E a beberagem, apesar de forte, de fortíssima, não fez efeito, não deu resultado. A mezinha era esta: “moer a quina, botar no sereno, beber em jejum com dois dedos de cobre…” A febre continuou. Continuou mais alta. O velho Fernão, com os seus setenta anos, principiou a delirar e no seu delírio tinha visões terríveis: via o filho enforcado, via as esmeraldas, via tudo verde. Apontava, mostrando a Garcia Pais, a Borba Gato… E Garcia Pais e Borba Gato não viam nada. E a maleita terrível foi matando-o, a pouco e pouco. E aquilo rolou noite afora, até o amanhecer. E quando amanheceu, a nova medonha, desconcertante, estalou no acampamento: Fernão Dias havia morrido! Todos choraram a perda do chefe heróico. Choraram tanto quanto o filho e o genro. Estávamos entre março e junho de 1681.

      A fúnebre jornada

      Morto o chefe da bandeira, trataram de enterrá-lo… Com todas as honras. Foi quando Garcia Pais levantou a voz. Não, não permitia que sepultassem o pai na selva. Queria levá-lo para São Paulo. Queria conduzi-lo até Piratininga, para que sua mãe o visse pela última vez. Mas como? Seria uma travessia sem par! Seria uma temeridade! Houve quem procurasse tirar aquilo de sua cabeça. Mas ele, como genitor, era teimoso. E meteu mãos à obra. Mandou embalsamá-lo. (…) Devidamente embalsamado, à moda dos sertanistas, os ossos de Fernão Dias Pais foram arrumados dentro de uma tosca urna de madeira. Assim tudo preparado, Garcia Pais iniciou a rude jornada, rumo a São Paulo. Com ele, iam os últimos índios.

      A assombrosa travessia intimidaria a qualquer um mais afoito. A ele, não. Animava-o, acima de tudo, o amor filial. E foram andando, andando só Deus sabe com quantos sacrifícios! Vararam florestas soturnas, vadearam rios caudalosos, defenderam- se como puderam dos silvícolas, das feras, de um mundo hostil que os perseguia, inclemente. E nada os atemorizou, nada os fez retroceder. Continuaram firmes. Quando iam lá longe, quase em meio do caminho, eis que aconteceu a desgraça por que não esperavam. Quando atravessaram o encachoeirado rio das Velhas [afluente do rio São Francisco], a canoa, impelida pela correnteza, foi de encontro a uma pedra. E partiu-se. Soçobrou. Mal teve tempo de salvar-se a tripulação. Salvara-se com a ajuda de Deus. Se não fosse um milagre, todos teriam ido de bubuia, rio afora. Salvaram-se, mas não lograram salvar a urna com os ossos, que afundou e foi bater lá no fundo.

      Garcia Pais não desanimou. Iniciaram intensas pesquisas. Com a ajuda dos índios, destros nadadores, habilíssimos conhecedores dos mistérios das águas, labutou, dia e noite, sem esmorecimento. A extraordinária dedicação filial foi posta à prova. Após várias horas de fadiga, numa vigília continuada, um dos remadores tocou em qualquer coisa, lá em baixo. Mergulhou e retornou, com um sorriso de vitória. Era a urna que, intacta, retornava à tona. Estava salva! A satisfação foi grande. Valeu pelo enorme sacrifício. E Garcia Pais, mal contendo uma indisfarçavel alegria, prosseguiu viagem, naquele dia mesmo, na direção da Vila de São Paulo.

    • Antônio Pereira

      Os antecedentes

      Meses antes, Fernão Dias, que vivia no seu canto sossegado, sem pensar senão em envelhecer, em envelhecer com dignidade, recebia do rei de Portugal, em cartas continuadas, o apelo veemente de que se embrenhasse no sertão à cata de esmeraldas. Prometia-lhe mundos e fundos. O velho sertanista começou a ficar entusiasmado. Eram missivas verdadeiramente embasbacantes: “Fernão Dias Pais. Eu, o Príncipe, vos envio muito saudar… agradeço muito o zelo que tendes para com o meu serviço; e espero que, com a vossa diligência, se obre o que tanto deseja; e fico com a lembrança para que vós, assim como aos que vos acompanham, mande fazer as mercês que merecem tal serviço…” As promessas, porém, vinham com uma condição: sob a condição de “caso tivesse efeito o descobrimento que se deseja”. Vejam bem, que a coisa não era tão fácil assim. O príncipe mostrava-se receoso… E que cautelas!

      Fernão Dias concordou em varar as brenhas. Concordou em organizar a famosa bandeira, a mais famosa de todos os tempos. Aquilo, todavia, requeria dinheiro, muito dinheiro. As despesas seriam grandes, vultosas mesmo. É bem verdade que o velho bandeirante era abonado, dono de terras, tinha o seu pé-de-meia regular. Apontavam-no mesmo como detentor de numerosos haveres. No meio disso tudo, eis que, para entusiasmá-lo ainda mais, chegava de Portugal um documento que alvoroçou toda a gente, causando espanto não pequeno. Era a sua patente de Governador das Esmeraldas. Dizia o seguinte, textualmente: “A Fernão Dias Pais, nomeio Governador de toda a gente do descobrimento de esmeraldas e pratas. Ordeno, outrossim, ao Capitão-Mor da Capitania de São Vicente, aos Capitães de todas as demais, que honrem e respeitem a Fernão Dias por governador de dita gente. E que obedeçam, cumpram e guardem as suas ordens, por palavras e por escrito, tão pontual e integralmente como devem e são obrigados…”

      Diante de patente tão envaidecedora, o sertanista renomado não se conteve mais. Meteu mãos à obra. Fez o que não podia. Sua idade provecta era o menos. O diabo eram os gastos excessivos. Aquilo ia ficar caro, e tudo por sua conta e risco. E ele fez empenho absoluto de pagar tudo do seu bolso. Era homem soberbo, que, quando se metia numa coisa, costumava não fazer feio. E começaram as despesas. E que despesas! “…todas as despesas, que a prudência de qualquer deve conjecturar quais seriam, foram feitas à custa de Fernão Dias”. Chegou mesmo a fazer questão de pagar os bugres das aldeias do Príncipe que o iam acompanhar na empresa. Não deixou de dar-lhes os oito mil réis de praxe. E aquilo foi longe, tão longe que lhe custou os olhos da cara”.

      A coisa foi crescendo e, de tanto crescer, comprometeu até a sua fazenda. Foi quando lançou mão de empréstimos. Dirigiu-se aos capitalistas da Capitania. Pediu emprestado um conto de réis a Fernão Pais de Barros, outro a Gonçalo Lopes, outro a João Monteiro… E assim por diante. Só não lançou mão das jóias da mulher e das filhas. Respeitou-as. Conseguiu assim mil cruzados! Uma fortuna para a época. Um despropósito! Vejam só de que ardor estava tomado o velho bandeirante. não via na sua frente sacrifício de nenhuma espécie.

      A partida

      A hora da partida fora marcada para logo depois da missa e da bênção da bandeira. Fernão Dias reuniu o pessoal. Lá estavam todos a postos. Não faltou nenhum dos guapos “rompedores-de-mato”. Nem poderia faltar. Alguém gritou em meio ao bimbalhar festivo dos sinos: “Viva Fernão Dias!” E logo a multidão respondeu uníssona: “Viva!” Num desfile digno de nota foram aparecendo, ao chamado do chefe: Antônio Prado da Cunha, também parente, bandeirante de larga fama, Antônio Gonçalves Figueira, Manuel da Costa, Manuel Góis, João Bernal, Diogo Barbosa Leme, Baltazar Veiga, Belchior da Cunha, Pedro Leme do Prado, Antônio Bicudo de Alvarenga, o escrivão, Francisco Pires Ribeiro, Martim Preto… e muitos outros, todos eméritos conhecedores dos segredos da floresta. Além desses, os parentes mais próximos: Borba Gato, seu genro, o jovem Garcia Rodrigues Pais, um rapazelho ainda, seu filho amantíssimo; e por fim, o filho bastardo – fruto das loucuras da mocidade – José Dias, com a sua figura curiosíssima, ar rancoroso, bem diferente dos demais: “Não tem a fisionomia aberta de Borba Gato; nem tem a expressão simpática de Garcia”. No entanto, apesar de tudo, é o rebento por quem Fernão morria de amores… Será ele, desgraçadamente, “nas aventuras de jornada, o herói sinistro da página mais trágica da bandeira”. Fechando a fila, um carmelita e um franciscano, armados de garrucha.

      A marcha

      Começou a marcha. Atroaram nos ares as cornetas. Um tiro de arcabuz ribombou mais forte. E lá foram todos: “os escravos, os índios, as cangalhas, os panos breados, os sacos de couro, a tropa de carga, os cavalos de montaria…” Não faltava nada. Havia de tudo: “bruacas de sal, fumo de rolo, panos de toucinho, barris de pólvora, azougue, espingardarias, cargueiros sem conta de fazendas secas.” D.Maria Betim, sempre cercada pelas filhas carinhosas, olhava tudo aquilo com orgulho. Sentira-se doente dias antes. A doença lhe quebrara as forças. Abatera-a sobremodo. Chegara mesmo a pedir ao marido “…que dilatasse a jornada para mais tarde…” Mas a resposta de Fernão, em tão dura emergência, fora mais dura ainda: “…mesmo que a deixasse com a Santa Unção, ainda assim havia de partir…” E o dia da partida já estava marcado para aquele sábado, 21 de julho de 1674. E não podia faltar. E não faltou. E hei-lo a marchar como prometera e cumprira.

      As quatro tropas já iam longe, “com a sua multidão de arcos, com a sua multidão de minas, com os seus quarenta homens brancos, com os seus cargueiros entupidos de mantimentos”. Foi quando surgiu o padre Veiga. Era o capelão da bandeira. E com ele vinham um frade carmelita e um frade franciscano. Todos os três apareceram também armados: a garrucha metida nos coldres, o arcabuz no ombro… Uma negra desdentada – bruxa africana – começou a rezar pelos que partiam. E, na linguagem atravessada, benzia-os: – “Em nome de Deus Padre, em nome de Deus Filho, em nome de Deus Espírito: ar vivo, ar morto, ar de perlepsia, ar de estupor, ar excomungado, eu te arrenego em nome da Santíssima Trindade! Vade retro, ar do demo, para que saia desta bandeira e vá parar no mar sagrado, onde viva são e aliviado…”

      Tudo sumiu, em pouco, na poeira da estrada pedregosa. A vilazinha voltou ao seu sossego, à sua vidinha de costume. Um silêncio morno encheu de novo as suas ruelas, os seus becos, as suas encruzilhadas… Durante dias, durante meses, ninguém soube notícias dos sertanistas. Previa-se apenas que tudo ia correndo às mil maravilhas. E ia mesmo. Dali do largo de São Bento, a bandeira de Fernão Dias rumou na direção de Guaratinguetá. Depois, embrenhou-se nos pinheiros de Embaú. Tomou o caminho de Capivari. Parou um pouco em Baependi… De Baependi, encaminhou-se, sempre num mar de rosas, sem grandes dificuldades, para os lados da Serra Negra. Por fim, lhes apareceu o Sumidouro. O Sumidouro ficara à margem do rio das Velhas. Aí começaram os primeiros sofrimentos, as primeiras vicissitudes, as primeiras adversidades.

      O sumidouro

      A bandeira de Fernão Dias Pais embrenhara-se, fazia dois anos, em plena mata virgem. A luta fora das mais ásperas. Luta de vida e morte. Luta contra uma natureza rude e selvagem. Luta contra os silvícolas, contra febres palustres, ou as “carneiradas”… Cada dia, caia um morto. Cada dia, amanhecia um doente. Além disso tudo, de toda essa corte de mazelas, cada qual pior que a outra, principiou a falta de mantimentos, a falta de remédios, a falta de pólvora, a falta de roupas, a falta de tudo… O primeiro que desanimou foi o próprio Matias Cardoso de Almeida. A notícia estourou como uma bomba. Quem? O capitão-mor da bandeira resolvera voltar? Ninguém queria acreditar na novidade espantosa. Pois era verdade, verdade dura e cruel. Matias não chegou ao Sumidouro. De Paraopeba mesmo se despediu de Fernão Dias, e regressou apressadamente a São Paulo. Aquilo foi uma punhalada no coração do velho bandeirante.

      Aquele não seria o primeiro nem o último. Viriam outros. Dias depois, outros chefes foram desertando: Antônio Gonçalves Figueira, Antônio Prado da Cunha, Manuel Góis, João Bernal, Baltazar da Veiga, Belchior da Cunha… Todos homens de confiança, todos homens do peito, que haviam sido escolhidos a dedo. No entanto, tinham falhado… O único animado, no meio daquilo tudo era o Governador das Esmeraldas, apesar dos seus tenazes sessenta anos. – “Se todos me abandonarem, eu seguirei para a frente… Não retrocederei nunca. Nunca…” – repetia a cada momento, a cada deserção de um companheiro. A seu lado foram ficando alguns raros, os mais fiéis: o filho Garcia Pais, o genro Manuel Borba Gato, e também o capitão Diogo Barbosa Leme, Antônio Leme do Prado, Antônio Bicudo de Alvarenga…

      No Sumidouro, a coisa piorou. O único jeito foi arranchar. Não havia mais o que comer. É verdade que os rios estavam cheios de peixes, e os matos repletos de caças, mas, onde a pólvora e os arpões para matá-los e pescá-los? Fernão Dias teve uma idéia salvadora. Enquanto cuidavam dos doentes, dos atacados das febres ruins, das câmaras de sangue, das moléstias de frialdade, das boubas, tratados a mezinhas, plantaram lavouras de mantimentos. “Acamparam, cavoucaram o chão, semearam, esperaram luas inteiras pela colheita, colheram.” Prosseguiram depois, muito mais tarde, muitos meses passados…

      Aquilo foi desanimando os mais afoitos. Os homens foram ficando mais escaveirados, mais molambentos, mais cabeludos. Não pareciam gente, pareciam bichos-do-mato. O desânimo foi tão grande, tão desnorteador, que, uma manhã, o carmelita e o franciscano foram procurar Fernão Dias para dizer-lhe que também iam embora, que não agüentavam mais tanto sofrimento. o governador ouviu-os com dor no coração. “…mas não retrocedeu o ânimo do capitão, vendo-se sem os capelães.” A bandeira continuou sua rota mata a dentro. “…se despediram todos; e deixaram só a seu Governador, com o seu filho Garcia Pais, o seu genro Manuel Borba Gato, seus índios obrigatórios e alguns auxiliares de sua casa.”

    • Antônio Pereira

      A traição

      Os poucos, que acompanhavam o velho sonhador das esmeraldas, traziam a alma angustiada, saltitante de pressentimentos maus. Só pensava em desgraça, afundando-se cada vez mais na floresta virgem, cheia de perigos medonhos, de bugres traiçoeiros, de cobras venenosas, de feras famintas, tão famintas quanto aqueles homens afoitos. O remédio, o único remédio em emergência tão desoladora, era voltar. Mas, era isso, justamente isso, que Fernão Dias Pais não queria. Ele havia empenhado a sua palavra ao rei de que procuraria as esmeraldas e traria as bruacas penhes delas, daquelas pedras preciosas tão ambicionadas! não voltaria de maneira alguma, sofreria tudo, comeria o pão que o diabo amassou, sujeitar-se-ia a todos os padecimentos mais cruéis, tudo enfim, mas não tornaria a Piratininga de mãos vazias. Já o prometera a d. Maria Betim. Fez, então, apenas uma coisa: determinou que meia dúzia de homens fosse a São Paulo entender-se com sua estóica esposa e lhe contasse tudo, tudo o que estava acontecendo. Ela que desse um jeito. Que lhe mandasse com urgência provisão seca, sal, azougue, chumbo, pólvora… Tudo. Se não tivesse dinheiro, que pedisse emprestado. Mas que a bandeira não poderia fracassar… Sua frase ainda ressoava aos ouvidos: “não volte de mãos vazias, sô Fernão! Traga as pedras ou a prata…”

      Foi nessa hora eminentemente trágica que outra página mais trágica ainda sucedeu. Página de que não há memória na crônica de todos os tempos dos fastos paulistas. Seu protagonista principal, uma figura merecedora de um estudo mais acurado de sua personalidade psicológica, foi José Dias. Era o filho bastardo, “o filho dos delírios da mocidade”, por quem Fernão Dias morria de amores. Pois bem, José Dias teve a coragem inaudita de encabeçar uma traição contra o seu próprio pai. Forjou tudo maquiavelicamente. Cedamos a palavra a Pedro Taques [Pedro Taques de Almeida Pais Leme, historiador – 1714-1777]. O abalizado historiador retrata tudo com a maior fidelidade. Copiemo-lo:

      “…Querendo José retirar-se para o povoado, com temor de perder a vida ao rigor de tantas coisas, a que viviam sujeitos todos os que restavam do grande número de pessoas, de que se tinha composto o troço, e discorrendo que esta ação não podia verificar-se sem primeiro tirar a vida do Governador Fernão Dias, seu pai, fez conciliábulo dos seus parciais, que, sujeitando-se a final arbítrio, consentiram na proposição de tirar-se a vida ao dito Governador para se retirarem livremente com todas as armas e a limitada porção de pólvora e bala que ainda havia, e assim deixarem ao total desamparo aos poucos brancos que ainda restavam do numeroso corpo que saíra de São Paulo. Mas foi Deus servido que, estando em uma noite nas diabólicas assembléias, em consulta da resolução que tinham tomado, transpirassem algumas vozes aos ouvidos de uma mulher, guaianás, já velha e cansada, que, por oculta Providência de Deus, tinha saído naquela hora da sua cabana e, sentindo rumor na casa do conciliábulo, aplicou os ouvidos às paredes dela, que eram de tabique, e esburacadas ao rigor dos invernos. Percebeu ela muito bem a crueldade do assunto tomado na assembléia e, ao mesmo ponto, com discretas cautelas, veio informar de todo ao Governador.”

      [ Fernão Dias ouviu tudo da índia. Escutou-a com a maior atenção…]

  • Antônio Pereira

    (continuação)
    Quando chegou à Vila de São Paulo, esperava-o a aflição de sua genitora e de suas irmãs. Já tinham tido notícia da morte de Fernão Dias. Os restos de Fernão Dias foram inumados, com grande acompanhamento, conforme sua última vontade, na igreja de São Bento. As exéquias ficaram caras. Custaram a dispendiosa importância de seis mil réis, paga em duas prestações ao armador João Álvares…

    As pedras analisadas

    Terminados os funerais, a que compareceu a melhor gente de São Paulo, enchendo totalmente a humilde igrejinha, Garcia Pais foi convidado a comparecer a uma sessão extraordinária da Câmara, para fazer um relato daqueles espinhentos sete anos de sertão bruto, e, principalmente, para exibir as famosas esmeraldas, que tanto e tanto tinham dado o que falar. Garcia Pais compareceu levando consigo, bem escondidas na sua sacola de couro, as 47 pedras verdes. “…Exibiu Garcia Pais à Câmara quarenta e sete pedras verdes, entre grandes e pequenas, pesando um arrátel e cinco oitavas; mais um saco de finas e outro de pedras miúdas.”

    Todos manusearam, com o maior cuidado e atenção, as esmeraldas, e achavam-nas lindas e perfeitas. Não houve quem não boquiabrisse surpreso e emocionado. Bem que Fernão Dias prometera. Prometera e cumprira. Descobrira as pedras. As pedras estavam ali. Ninguém mais podia duvidar. Tudo aquilo, todas aquelas 47 pedras foram imediatamente embarcadas para Lisboa, a fim de serem examinadas pelos lapidários. Enquanto isso, a vilazinha ficou ansiosa aguardando a resposta. Como demorou! Até que, um belo dia, aportava a nau trazendo a carta real. E a carta real dizia esta coisa espantosa: “os lapidários mandavam dizer que aquelas esmeraldas eram esmeraldas de superfície, pouco transparentes, queimadas de sol.” Que decepção! Aconselhava a carta mais o seguinte: “…profundar mais a terra por se entender que só assim se virão a achar mais perfeitas, e com diferente bondade, em razão das que trouxe serem de superfície, e isso para que, de uma vez, se tome desengano deste descobrimento há tantos anos pretendido.” Ainda era uma esperança, uma vaga esperança… Todavia…

    O epílogo

    Garcia Pais bateu de novo para o sertão. E lá no sertão cavoucou, cavoucou o que pôde e trouxe mais amostras das tais pedras verdes. E tudo seguiu outra vez para a corte. E, meses depois, veio para a Câmara de São Paulo uma resposta desconcertante, que a todos deixou embasbacados: “As esmeraldas não eram esmeraldas! Eram turmalinas à-toa…” Aquilo estourou como uma bomba, uma bomba tremenda, por que ninguém esperava. Fora arrasante a notícia. Acachapante! Quanto sacrifício, quanta canseira, quanto suor perdidos!

    Enquanto tudo isso acontecia, enquanto rolavam novidades tão desconcertantes, dom Rodrigo de Castel Branco, castelhano de nascimento, mineiro de confiança do príncipe, que andava no encalço da bandeira de Fernão Dias, tendo sabido da nova descoberta sensacional, escrevia-lhe, por intermédio de Francisco João da Cunha esta desastrada carta: “…chegado aqui me disseram que V.Sa. tinha descoberto as esmeraldas. Dou-lhe repetidos parabéns por esse serviço que V.Sa. tem feito à coroa: mas eu fora de parecer que V.Sa. não fizesse ainda aviso à Corte, até que nos avistemos. É bom que veja eu as pedras. Veja se tem aquela fineza que se necessita para seu valor. Depois farei eu aviso à Corte. De V.Sa. su serbidor (beso las manos de Vuestra Señoria) (a) D. Rodrigo de Castel Blanco.”

    Missiva tão fora de propósito veio a chegar com grande atraso. Fernão Dias já havia morrido. Recebeu-a Borba Gato, e Borba Gato ficou exasperadíssimo. Ficou fulo de raiva. Dali nasceu incomensurável rancor. Rancor tão grande que acabou em tragédia: (…) a 21 de outubro de 1682, estourava a notícia de que D. Rodrigo de Castel Blanco havia sido assassinado em pleno sertão. (…) Depois de um bate-boca acalorado, Borba Gato, arrebatado de furor, deu em D. Rodrigo violento empurrão e atirou-o de uma alta cata, na qual se precipitou, indo cair morto lá em baixo. Foi isso o que aconteceu em 1682, naquele sítio de Sumidouro.

    * * *

    [Após isso, Borba Gato empreendeu uma empreita até a Serra de Sabará-buçu, que se dizia era resplandecente de prata. Todavia, o que ele encontrou, não foi prata, mas sim ouro, uma serra de ouro. Sabendo do caso, o Governador Artur de Sá e Menezes, que viera do Rio de Janeiro para acompanhar a exploração, agiu junto à corte, obtendo dela o perdão a Borba Gato pelo homicídio por ele cometido, “declarando em voz alta, para que todos ouvissem, que sobre o assassínio de d. Rodrigo de Castel Blanco se fizesse perpétuo silêncio!” A vila de Sabará-buçu, para todo sempre ficou conhecida simplesmente como Sabará; Borba Gato foi agraciado com o título de “General do Mato” e ficou rico, riquíssimo. Seus filhos, seus genros, seus netos tornaram-se o tronco de numerosas famílias brasileiras. E viveram felizes para sempre…] Visite Sabará.

    http://www.pitoresco.com/historia/rocha06a.htm

  • Robério

    o negocio é o seguinte independente das historias contadas eu tive a oportunidade de visuializar este ser em uma mata;o local é um parque em são paulo e se chama núcleo do engordador e o saci que eu vi era assustador .

  • Parentes. Sou um descendente dos Tabajaras da Serra da Ibiapaba, que fica entre o Ceara e o Piaui. Resido ha quase 50 anos em Salvador, Bahia. Nao sou poeta, nem ficcionista. Mas vejo-me envolto com livros desde pequena idade. Tenho dois livros publicados, alem da participacao em uma coletanea poetica, disponivel no http://www.estantevirtual.com.br. Em 2018 publicarei uma edição piloto da Encilopedia Amerindia do Canada a Argentina, por mim organizada e editada, com 13.000 verbetes nominais, 500 NR, mais de 250 referencias biliograficas, de outras fontes e midias. Trata-se de trabalho inedito na America Latina sobre a presença e o protagonismo amerindios nos ultimos 500 anos.
    Meu email: txay@uol.com.br

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