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Brasil: Sobre a condenação do Vaticano no caso de aborto da menina estuprada

Categorias: América Latina, Brasil, Ciência, Direitos Humanos, Esforços Humanitários, Governança, Juventude, Lei, Mídia Cidadã, Política, Religião, Saúde
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Olinda and Recife's archbishop, dom José Cardoso Sobrinho, by Alexandre Severo, published under a Creative Commons license

Na última semana de fevereiro, uma menina de apenas 36 quilos, 1,33 metro, e 9 anos de classe média-baixa, na cidade de Alagoinha, no Pernambuco, reclamou de fortes dores na barriga. Acompanha por sua mãe até uma unidade de saúde, constatou-se a gravidez de gêmeos na 15ª semana de gestação. Então confessou à mãe que ela e a irmã mais velha, de 14 anos, eram violentadas pelo padrasto há pelo menos 3 anos. O padrasto será indiciado por estupro e está detido no presídio público de Pesqueira, no Pernambuco, onde deve permanecer até o fim do inquérito.

Depois de muita oposição da Igreja Católica e do acompanhamento de psicólogos, o aborto foi realizado, previsto na legislação brasileira em casos de estupro (até a 20ª semana de gestação) e quando houver risco de morte para a mãe. Este caso se encaixava em ambas as características.

Mas, em seguida, um debate social envolvendo a Igreja Católica e o poder Judiciário veio a tona no Brasil: amparado pelo Vaticano [2], o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, excomungoua mãe, o médico e a equipe de médica responsável pelo procedimento cirúrgico. A menina foi poupada, já que a lei da Igreja Católica diz que menores estão livres da excomunhão. Contudo, não excomungou o padrasto [3], chegando a dizer no jornal O Globo (7/3/09) que o “crime de estupro é menos grave” que o de aborto e que “os gêmeos eram pessoas inocentes”.

A notícia que reacendeu no Brasil o tema do aborto, pôs em evidência a interferência da Igreja Católica sob decisões pessoais e judiciais de um Estado laico, movimentou a blogosfera lusófona. Sebastião Nunes, em seu blog Pedra de Responsa [4], se manifesta:

É impressionante a hipocrisia envolvida neste julgamento inquisitorial feito pala Igreja Católica. Uma criança violentada em seu corpo e seus direitos, desde os 6 anos de idade, com risco elevado de morrer pela continuação da gestação, tem, conforme a estúpida decisão destes cardeais, que aceitar a beleza do milagre da vida e morrer, se necessário for, pois esta foi a vontade de Deus.

E depois a Igreja Católica não entende porque o povo abandona as suas fileiras. Conforme o julgamento da Igreja foi a vontade de Deus que fez o padrasto da criança estuprá-la covardemente. Triste Deus este.

Em tom de ironia, Lelê Teles, no blog Technosapiens [5], diz que o Brasil é o país da piada pronta, lamentando que o clérigo tenha punido a frágil vítima justo no dia Internacional da Mulher:

O mais indignante é que no dia internacional da mulher, um senhorzinho religioso aparece para mostrar que o mundo dele ainda é machista, e que machistas deveriam ser o estado e a ciência.

O bispo queria que a menina seguisse grávida de outra menina porque ele diz que defende o direito à vida. Mas como a menina de nove anos de idade corria risco de morte se continuasse com a gestação, logo, subentende-se que o bispo defendia a vida do… estuprador.

Vitor Lessa tem em seu blog uma publicação chamada Ignorância [6], na qual indaga se a Igreja Católica sabe que vivemos em um estado laico, se ela sabe que nem todos pertencem a essa instituição e aponta outros pontos de vista questionáveis ‘sugeridos’ pelo Vaticano.

[…] ele [o cardeal] está afirmando que devemos voltar a idade média quando o Estado e a Igreja se confundiam e o clero ditava as regras supostamente estabelecidas por Deus. Quando milhões de pessoas foram queimadas em nome de Deus, quando a igreja dizia que os homens deviam servir a seu senhor feudal porque Deus assim desejava e muitos outros fatos. Em momento nenhum ele pensou que o Brasil não é constituido somente de católicos, que o Brasil é um país laico (sem religião definida) e que os seus habitantes elegeram pessoas que fizeram uma constituição legítima para reger o país e sua população. Em momento nenhum o bispo lembrou que não está na idade média e que, acima da instituição a qual ele pertence, existe um Estado que deve atender às necessidades de todos os seus cidadãos. Afinal, todos são iguais perante a lei e pagam impostos para sustentar a nação. Não pensem que essa é uma atitude isolada de um bispo, é uma postura sustentada pela Igreja católica. A igreja católica não somente é contra o aborto em casos de estupro, mas também contra a lei que protege os homossexuais, que pagam impostos e são juridicamente iguais ao bispo. Portanto, se a igreja aceita que parcelas oprimidas (como as mulheres que são agredidas por seus maridos) sejam protegidas por lei, por que outra parcela como a dos homossexuais não podem ser progida? Afinal, são ou não são todos iguais? A igreja católica também proibe o uso de camisinha ou qualquer método anticoncepcional.

Daniel Braga, em seu blog Mausoléu do Gárgula [7], fala sobre o assunto com o título de Cegueira Religiosa. Nesta publicação, o blogueiro faz uma série de questionamentos que tratam não apenas das condições físicas da menina continuar com a gravidez, mas também das condições financeiras e sustentáveis de ter dois filhos aos 9 anos:

Acredito que uma das piores coisas já inventadas pelo homem é a cegueira religiosa. Observem bem que não estou falando da religião em si, pois esta é realmente importante ao homem, mas sim de dogmas absurdos que acabam causando a cegueira religiosa.
[…]
Surgem algumas perguntas e não vou de forma alguma respondê-las, deixando a todos a tarefa de refletir sobre as possíveis respostas:

  • Será que esta menina conseguirá prosseguir com esta gravidez sem que seu corpo seja mais maltratado do que já está? Poderia esta gravidez ter um risco elevado levando então a morte das crianças, todas as três?
  • Como uma criança poderá criar estas duas crianças?
  • Qual o dano social futuro desta família?
  • Como estará a mente desta pobre criança que deveria estar brincando com bonecas mas que foi o alvo dos abusos de um estuprador?
  • Como será a estrutura familiar que esta menina vive?
  • Como ficaria esta mesma estrutura familiar depois do nacimento destes bebês?
  • Qual deveria ser o papel da religião neste caso? Um papel punitivo ou confortante?
  • Sendo punida, direta ou indiretamente, pelos representantes religiosos, como esta criança se sentirá agora? Será que ela somatizará os problemas jogando em si mesma a responsabilidade do hediondo fato?

Até o presidente Lula se manifestou, dizendo que é católico e pessoalmente contra a legalização do aborto, mas que como chefe de estado apóia a prática em casos como este (e como uma questão de saúde pública). Além disso, também criticou a postura Católica [8]:

[…] a medicina fez o que tinha que ser feito, salvar a vida de uma menina de 9 anos. […] Como cristão e como católico, lamento profundamente que um bispo da Igreja católica tenha um comportamento, eu diria, conservador como esse.”

O advogado da Igreja Católica disse que entraria com uma denúncia por homicídio contra mãe da menina, com base nos artigos 1º e 5º da Constituição Federal, que asseguram a inviolabilidade do direito à vida. Ele disse que “além de considerar nossas convicções religiosas, nossa denúncia está atrelada à Constituição”. Mas, o Ministério Público de Pernambuco se pronunciou [9] a respeito do caso:

O Ministério Público de Pernambuco, através da promotora Jeanne Bezerra, está acompanhando junto à Secretaria Executiva da Mulher e à ONG Curumim o caso da garota de nove anos grávida em decorrência de estupro em Alagoinha. De acordo com as informações repassadas à promotora pelo órgão e pela entidade, a garota está recebendo o acompanhamento médico, psicológico e social assegurados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Até agora, não foi necessária a atuação judicial do MPPE. Como a legislação brasileira PERMITE o aborto em vítimas de estupro até a 20ª semana de gestão (entendimento do STJ), o procedimento pode ser realizado de acordo com avaliação médica, INDEPENDE de autorização judicial e, portanto, de parecer do Ministério Público.

A maioria das reações na blogosfera brasileira criticaram a atitude da Igreja Católica, mas um pequeno grupo de blogueiros apoiou a decisão do arcebispo brasileiro de excomungar todos os envolvidos no aborto. Entre eles, Jorge Ferraz [10], desde Pernambuco, escreveu em uma carta aberta para dom José Cardoso Sobrinho e recebeu mais de 100 comentários, tanto a favor quanto contra a decisão da igreja. E em outro blog, numa carta aberta anterior, Maite Tosta [11], quem também é mãe, disse que a decisão da Igreja não poderia estar mais correta:

Nesse momento, em que essa menina precisava de apoio, de ajuda, de atendimento médico, psicológico e porque não, espiritual, vozes se levantaram para apontar uma saída “mais fácil”, que querem fazer crer que era a única razoável…

Logicamente, a situação da menina preocupa. Mas e os gêmeos? Não merecem nosso cuidado? Nossa preocupação? A vida humana não-nascida é tão vida quanto a nascida, e merece o mesmo cuidado. Por serem frutos de uma relação violenta, que não deveria ter sido consumada, não são humanos? Quer dizer que um feto é gente quando é desejado, e é coisa quando não o é?

O que é mais fácil para os envolvidos? Dar assistência, cuidar, acompanhar? Ou “eliminar o problema”? Mas… pergunto, mais fácil para quem? Afinal, essa menina vai crescer, não sem marcas deixadas por esse episódio. Apesar de todas as pessoas ao seu redor lhe dizerem que foi melhor assim, que seu corpo não comportava, que era gravidez de risco, que eram crianças frutos de violência e ela não precisava conviver com elas, que a lei não pune… ela sempre terá na sua consciência que consentiu na morte dos próprios filhos… essa é uma memória que não se apaga nunca, e que tem um gosto amargo.

Infelizmente, o caso não foi o primeiro e,  provavelmente, não será o último. No dia 6 de março, outro padrasto foi denunciado por estupro [12], desta vez no Rio Grande do Sul. A menina, de 11 anos e grávida de sete meses, está internada em Tenente Portela (RS) e a gestação é considerada de risco. O inquérito está em andamento em ambos os casos.