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Guiné-Bissau: Caldeirão de sentimentos após assassinato duplo

Categorias: África Subsaariana, Guiné-Bissau, Desenvolvimento, Eleições, Governança, Guerra & Conflito, História, Mídia Cidadã, Política

O presidente da Assembléia Nacional de Guiné-Bissau, Raimundo Pereira [1], assumiu o cargo de presidente interino do país depois que o Presidente João Bernardo Vieira [2] foi morto em um ataque na segunda-feira [3], horas depois do assassinato do tenente-general das forças armadas Batista Tagme Na Waie [4] [en]. O presidente interino tem agora dois meses para organizar uma nova eleição, como previsto na constituição do país. A medida que o exército deixa as ruas, os blogueiros relatam que, em menos de 24 horas depois do assassinato, a vida começa a voltar ao normal, mas há ainda incertezas quanto o que aconteceu de fato, e sobre o futuro próximo.

A calma pode ter voltado desde a segunda-feira, mas muitas pessoas ainda estão com medo, temendo o retorno da guerra. Ana Cláudia [5] [pt], professora portuguesa que reside em Guiné-Bissau, relata a conversa que teve com sua melhor amiga um dia após os assassinatos:

Foi a olhar para ela e a ouvir as explicações dela que “acordei” do estado de ignorância ou inconsciência em que estava até então. Veio carregar o telemóvel. Depois com olhos de quem tinha estado a chorar e com voz de assustada contou: “Não dormi. Toda a noite muitos tiros. (…) Os meninos ficaram em casa. (…) Sim, vou voltar para casa depois de carregar o telemóvel, vou ficar com os meninos. (…) Ninguém dormiu nada. Todas as pessoas estão muito assustadas. Algumas pessoas já começaram a fugir.”
A fugir? Então atingiu-me. As pessoas estavam com medo.
Ainda na 5ª feira passada, à tarde, ouvi guineenses louvar e chamar com alegria pelo Presidente Nino / General Cabi que passava na Avenida 14 de Novembro ao regressar ao país após duas semanas de ausência, e por isso muitos guineenses choram a sua morte e estão muito tristes, mas mais do que isso esta madrugada o povo guineense assustou-se, reviveu os momentos de terror da guerra que acabou há menos de 10 anos.

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HPC [6] [pt], outra portuguesa morando em Guiné-Bissau, confirma essa mistura de sentimento de medo, esperança e cansaço. Ela disse que notou como as pessoas na rua estão tristes, mas destaca que apenas o povo de Guiné-Bissau pode “continuar em frente, com o mesmo sorriso” em uma situação dessas. Ela teve vontade de tirar fotos, mas a polícia não permitiria algo do tipo:

Houve medo nos bairros de Bissau. Lá está-se vulnerável pois não há grossas paredes para proteger nem que seja do estrondo das bombas. Está-se rente ao chão … à mercê.

Para além do medo há vergonha. Vergonha de terem um país que só é notícia pelas piores razões (como se diz em linguagem de noticiário). Um país onde se matam os dirigentes políticos e onde nunca se sabe quem o fez. E não há nada mais triste do que ver os guineenses com vergonha.

Quanto aos acontecimentos, depois de uma segunda-feira de reclusão, hoje fui tentar trabalhar e tive que fugir para casa porque havia confusão no Bandim. Primeiro constou que sem tiros, logo a seguir já os havia. Vim por atalhos porque a polícia tinha cortado o trânsito na Chapa. Passei por bairros e pensei “Tenho que fotografar isto para o blog” e senti-me culpada por esse olhar de repórter de meia-tigela.

Ana e Simão [7] relataram que a cidade estava mais calma no dia 3 de março:

As estradas de entrada e saída da cidade reabriram, sem militares nos controlos. O comércio voltou a funcionar. Mas tudo é imprevisível. A pessoas revelam uma alegria e alívio contidos (morreu um homem sanguinário, responsável em grande parte pela situação a que o país chegou). Contêm também a tensão e a expectativa, foi aparentemente um bom acontecimento, mas a Guiné sempre foi imprevisível. Volta-se a tentar fazer a vida normal, volta-se a ter esperança:
-”É agora que o país levanta – (onde é que já ouvi isto?). Que Nino descanse em paz e nos deixe descansar.”

E blogaram novamente no dia 5 [8], dessa vez falando das expectativas das pessoas para as próximas eleições:

É impossível sabermos a curto prazo – e provavelmente a longo prazo – pormenores sobre os assassinatos. O que sabemos é que os funerais estão marcados para sábado (Tagme Na Waye) e 3ª feira (Nino Vieira). Sabemos que se vão marcar eleições ainda este ano e sabemos que Kumba Yalá [9] se vai candidatar e com certeza proporcionar campanhas animadas. Sabemos que a melhor alternativa é o Dr. Henrique Rosa, mas tem pouca aceitação fora de Bissau.

Um dos blogueiros mais atuantes durante esse conflito, António Aly Silva [10] publicou imagens muito fortes [11] mostrando o cenário do assassinato do presidente. Ele diz que preferiria que seu blogue não tivesse ganhado notoriedade por motivos tão tristes, e lembra que essa não foi a primeira vez:

Desde o fim da guerra de 1998/99, já assistimos a quantos assassinatos na Guiné-Bissau? Antes mesmo dessa guerra, quantas personalidades deste País desapareceram em circunstâncias ainda hoje por esclarecer? Quantos filhos desta terra, os mais bem intencionados, foram eliminados? Quantos não vimos partir, um por um, traídos, submetidos a julgamentos humilhantes, muitas vezes sumários e, de seguida, abatidos como gado? Se o povo guineense não se erguer, será espezinhado e humilhado. Como tem sido desde 1973.

Em outra postagem [12] [pt], um dia após o assassinato no presidente, António teme mais violência:

Ex-ministros guineenses ligados a “Nino” Vieira estão a receber ameaças de prisão ou de morte na sequência dos assassínios no país, disse hoje o antigo chefe da diplomacia do país, Soares Sambú.

Há “pelo menos nove nomes” de personalidades políticas que estão a ser “perseguidas”.

Segundo Soares Sambú, a “lista” inclui nomes como os ex-ministros da Defesa Helder Proença, Marciano Barbeiro e Daniel Gomes, o ex-ministro da Economia e Finanças Issufo Sanhá, os dos antigos secretários de Estado Isabel Buscardini, Roberto Cacheu e Baciro Dabó (antigo chefe da antiga secreta guineense) e ainda o empresário Manuel dos Santos (”Manecas”), além do próprio Soares Sambú.

Sobre o paradeiro de João Cardoso, ex-chefe de gabinete do Presidente da República, Soares Sambú afirmou desconhecê-lo, admitindo porém que o homem forte do regime esteja em segurança, mas em local desconhecido.

Nino Vieira teve uma conturbada carreira política. Ele foi presidente de 1980 a 1999 e novamente de 2005 a 2009. Em 1980, Vieira tomou o poder e governou por 19 anos. Em 1994, ele ganhou as eleições, mas foi deposto ao fim da guerra civil de 1998–1999. Ao vencer as eleições presidenciais de 2005, ele voltou ao cenário político e se manteve no poder desde então. Mas, ao que parece, nem todos sentirão saudades do líder. Em um comentário deixado no Global Voices em Português, Miguel Angelo [13] pede que os bens do presidente morto sejam confiscados:

Como Gunieense, essa triste notícia vem abalar mais ainda a nossa penosa reputação.
O nosso país tem até hoje a fama de lugar intolerante e de gente que não se entende. Como pode isso? O verdaeiro culpado disso é o prórpio Nino. Ele se transformou em ditador sem mais nem menos. Depois do golpe que ele deu em 14 de Novembro de 1980, prometeu na altura que iria fazer eleições livres e que não estava interessado a ficar no poder. Ficou direto 18 anos. DEZOITO ANOS!!!! Ninguém merece!!!

Uma geração inteira Somado a mais esses anos, só deu vergonha ao País. Agora a Guiné é um país de tráfico, do medo, da corrupção no mais alto nível e sem contar as roubalheiras e sem vergonhices de todo o tipo. Parece que não são pessoas capazes de entender que sem rotatividade no governo, não há democracia de verdade. São sempre as mesmas pessoas, o mesmo Nino e a sua corja.