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Brasil: Contra o Aborto Ilegal, ou Contra as Mulheres?

Categorias: América Latina, Brasil, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Governança, Ideias, Juventude, Lei, Mulheres e Gênero, Política, Religião, Saúde

O aborto é um tema muito complexo no Brasil (leia aqui [1] – principalmente os comentários – e aqui [2]), como em qualquer outro lugar da América Latina [3]. É considerado crime [4] no país, embora haja uma suspensão de punibilidade em casos provados de gravidez advinda de abuso sexual e de gestações que coloquem em risco a vida da mãe. Há um esforço por parte de alguns parlamentares para mudar esta lei, para diminuir a burocracia necessária [5] para se obter a permissão para abortar nestes casos e aumentar o espectro de casos onde o aborto não é punível. Mas a possibilidade de que estas mudanças ocorram é pequena, tendo em vista a força política dos grupos pró-vida [6] que planejam erradicar o aborto no Brasil.

Apesar da proibição, acredita-se que a cada ano mais de 1 milhão de abortos clandestinos sejam realizados, e mais de 70 mil mulheres morram [7] por causa de complicações provenientes de abortos mal-sucedidos no Brasil. Em alguns estados brasileiros, como o da Bahia [8], as taxas de mortalidade feminina são cinco vezes maiores que o limite máximo fixado pela Organização Mundial de Saúde [9] [En], e a maioria destas mortes [10] é causada por complicações resultantes de abortos ilegais realizados no estado.

Crucified Woman, by Eric Drooker, All Rights ReservedCrucified Woman [11], por Eric Drooker [12]. Usada sob permissão [13]. Todos os Direitos Reservados.

Enterrem os mortos. Persigam os sobreviventes.

Em novembro passado, mais de 1.500 mulheres foram processadas [14] e 30 delas condenadas pelo crime de aborto no mesmo dia na cidade de Campo Grande [15], no Centro-Oeste brasileiro. Ironicamente, corre o rumor de que algumas destas mulheres seriam sentenciadas a fazer trabalho comunitário em creches. Ou isso, ou iriam para a cadeia. Elyana, do blogue Rosa e Radical [16], desabafou [17] sobre isso em seu blogue:

“Fizeram as contas? Em cerca de 4 horas e meia o juiz condenou 4 mulheres e acusou mais 1.070.
Nunca antes nessa minha vida vi a justiça trabalhar tão rápido.
As acusadas entraram com habeas-corpus [18], mas todos eles foram negados.”

Em outro post [19], Elyana cita uma entrevista [20] sobre o tema do aborto, cedida pelo Ministro da Saúde brasileiro, José G. Temporão, a uma popular revista brasileira de popularização científica. Na entrevista, Temporão diz que o aborto é uma questão de saúde pública e aponta que a oposição à sua legalização é ligada a questões de gênero. Abaixo, citamos um trecho da entrevista citada por Elyana:

“[…] como as classes de menor renda não têm acesso à informação e aos métodos anticoncepcionais, são as mulheres pobres que realizam aborto em condições inseguras. Para as mulheres ricas, o aborto é uma questão que não se coloca. Elas fazem. Em condições seguras. Pagam R$ 2 000, R$ 5 000. As mulheres pobres não. Existe também uma questão de gênero. Eu pergunto: se os homens engravidassem, será que essa questão já teria sido resolvida? Como é que alguns setores têm coragem de dizer que essa é uma questão que não pode ser discutida? Não vamos discutir que as pessoas estão morrendo? A realidade está batendo na nossa cara.”

Mothers of the World, by Eric Drooker, All Rigths Reserved
Mothers of the World [21], por Eric Drooker [12]. Usada sob permissão [13]. Todos os Direitos Reservados.

Um Inquérito sobre Mulheres… digo… sobre Aborto Ilegal

O ponto de vista do ministro Temporão, contudo, não parece ser partilhado por muitas pessoas no Governo Brasileiro e na blogosfera do país. No da 8 de dezembro último, Arlindo Chinaglia [22], presidente da Câmara dos Deputados [23] do Brasil, aprovou a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito [24] (CPI) sobre o Aborto Ilegal no Brasil.

A criação desta comissão foi peticionada por um grande grupo de deputados pró-vida liderados pelo parlamentar Luiz Bassuma, que coletou mais de 220 assinaturas de colegas congressistas para apoiar a sua criação. Bassuma é membro do Partido dos Trabalhadores [25] (PT), o mesmo do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva [26], e foi eleito deputado federal [27] pelo estado da Bahia. O Partido dos Trabalhadores, que decidiu em sua última convenção tomar uma postura pró-escolha [28] sobre o tema do aborto no Brasil, está agora ameaçando expulsar Bassuma [29] por conta de suas movimentações que levaram à criação da CPI sobre o Aborto Ilegal.

Muitos blogueiros que se declaram pró-vida festejaram a iniciativa de Chinaglia.

Jorge Ferraz, do blogue cristão Deus Lo Vult [30], parabenizou Arlindo Chinaglia pela instalação da CPI do Aborto Ilegal neste post [31]:

“Já não era sem tempo; desde fevereiro que se fala nisso [32]. Rezemos para que o crime seja combatido, e o assassinato de crianças inocentes não seja tratado pela sociedade com indiferença e impunidade.”

Hermes Rodrigues Nery, Diretor Executivo do Movimento Nacional por um Brasil Sem Aborto, é citado no blogue O Possível e o Extraordinário [33] sobre os “perversos interesses internacionais sobre o aborto na América Latina [34]“:

“Há décadas querem impor e generalizar a prática do aborto nos países da América Latina, torná-lo inclusive um direito humano, o direito da mulher torturar e matar um ser humano inocente e indefeso dentro de seu próprio ventre […] A questão do aborto está inserida no contexto do controle demográfico. Os especialistas que fundaram o Conselho Populacional da ONU (em 1952), entre eles, Warren Thompson, já indicavam o aborto como estratégia pragmática para conter e até diminuir as populações pobres do mundo. […] Como vemos, a “conjura contra a vida” é um processo de um poderoso sistema (cultural, político e econômico) que age sem que muitos não se dêem conta de estarem sendo vítimas de alienação e manipulação. Agora, temos a oportunidade – com a CPI do Aborto – recém-criada no Congresso Nacional – de apresentar documentos, relatórios e depoimentos para expor e erradicar essa “chaga social”, com isso, trabalhando na defesa do direito à vida dos milhões de excluídos, barbaramente torturados e assassinados, para atender a lógica perversa dos poderosos, que agem contrariando o princípio universal de que a plenitude da vida é um direito de todos e um bem para todos.”

Contudo, muitos blogueiros discordam da criação da CPI, e pensam que ela irá apenas expor e intimidar as mulheres, e atacar ainda mais os direitos das mesmas.

Alessandra do Blog Terribili [35] acredita que Bassuma tenha alguma coisa contra as mulheres [36], e que a CPI é uma manobra religiosa dentro do Estado brasileiro, tradicionalmente laico [37]:

““CPI do Aborto” parece brincadeira de mau gosto. Vem do Bassuma, aquele deputado que é contra as mulheres, que parece que elege as mulheres como inimigas número um. Ele quer vê-las na cadeia, como criminosas, por terem cometido o terrível equívoco de tomar para si as rédeas de seu corpo e de sua vida. Ele se esquece de que o Estado é laico, que as pessoas têm direito de ter ou de não ter crenças e de que ele não pode impor sua fé religiosa sobre todos e todas.”

Jandira Queiroz, ativista dos direitos da mulher e blogueira que escreve no blogue Sapataria-DF [38], afirma que a CPI do Aborto Ilegal é uma forma de perseguir as mulheres e atacar seus direitos [39]:

“Como sabem, no ano de comemoração dos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos e às vésperas da realização da 11ª Conferência de Direitos Humanos, vivemos a intensificação da perseguição e criminalização das mulheres […] Mais do que nunca, precisamos denunciar a violação explícita aos direitos humanos das mulheres […] Os direitos das mulheres são direitos humanos!”

Foto de um cartaz [40] no Fórum Social Mundial [41] em Porto Alegre, Brasil, da autoria de Gabby de Cicco [42] e usada sob uma licença Creative Commons.

Pedro Cross, do blogue Multi-Eu [43], nos conta um pouco mais [44] sobre a oposição que está sendo feita pela bancada feminina da Câmara dos Deputados contra a CPI:

“A exposição da vida privada das mulheres é o principal argumento que a bancada feminina na Câmara dos Deputados apresenta para se posicionar contrária a instalação da CPI do Aborto. […] A deputadas se queixam de não terem sido ouvidas em um assunto que é de interesse da bancada e vão questionar o Presidente da Casa sobre o fato da CPI do Aborto ter sido instalada antes da CPI do Trabalho Infantil, que estava na frente na lista das comissões a serem instaladas.”

Uma questão muito complexa

Alguns blogueiros estão muito preocupados com o movimento pró-escolha no Brasil, visto por eles como uma cruzada homicida, anti-vida, contra os direitos das crianças não nascidas. Estes blogueiros não apenas apóiam a CPI do Aborto Ilegal, mas um deles chega a afirmar que o povo brasileiro “pode se extinguir da mesma forma que a população russa” se o Governo Brasileiro não combater o aborto ilegal no país ou, pior ainda, se o Governo o tornar legal. Marcelo, do blogue Quadro Conservador [45], diz [46]:

“A Rússia é o paraíso dos abortistas. Como todo país comunista, o aborto é totalmente liberado e publicamente custeado. Como o ateísmo também foi incentivado durante o século em que era comunista, barreiras morais também não existem por lá. O resultado é este: um país desesperado diante do declínio de sua população. Os russos entrarão em extinção? Como havia dito, uma política cuja conseqüência é o declínio da população humana é má por natureza.”

Se a população russa está realmente entrando em extinção, e se as leis russas sobre o aborto seriam a causa de tal vertiginoso declínio populacional, são ainda temas em discussão [47] [En].

Helder Moraes, do blogue Doa A Quem Doer [48], também acha que o aborto é ligado à falta de barreiras morais, e afirma [49] que se trata de um crime que é cometido por pessoas “que não tem moral, responsabilidade nem controle sobre os próprios desejos sexuais”, mas apóia a realização de aborto em casos de violência sexual:

”Sou CONTRA o aborto. Só sou a favor de aborto em caso de gravidez de RISCO e em caso de ESTUPRO, pois a mulher não pode ser obrigada a gerar um filho que ela NÃO DESEJOU, ainda mais vindo de um ato HEDIONDO desse. Do contrário, excluindo essas duas possibilidades, o aborto deve ser PROIBIDO SIM !!! Em vez de abortar, tem que se fazer a campanha: “FECHEM AS PERNAS MULHERES”. O que falta é muita vergonha na cara. Falta MORAl, falta RESPONSABILIDADE, falta EDUCAÇÃO, falta tudo !!! Por isso, fazem filho de penca, a torto e a direito e depois ficam aí… lamentando e procurando clínicas clandestinas de aborto !!!”

Ao final de seu post, Helder nos diz qual seria, na sua opinião, a solução definitiva para o problema:

“Sou a favor da esterilização OBRGATÓRIA de pessoas POBRES que tenham de 3 a mais filhos, e a favor de aborto somente em casos de gravidez de risco e de estupro.”

Muitos outros blogueiros e usuários do Orkut concordam com as idéias de Helder, seja por abertamente blogar ou publicar comentários semelhantes na blogosfera, ou simplesmente por expressar concordância e parabenizar aqueles que o fazem.

Por outro lado, grupos de defesa dos direitos da mulher, como a Frente Pelo Direito ao Aborto [50], afirmam que o aborto é um direito das mulheres, no contexto dos direitos de escolha das mesmas sobre os próprios corpos e sobre as próprias vidas. Márcia Silva, do blogue Márcia e suas leituras [51], publica o manifesto da Frente [52], o qual reproduzimos parcialmente abaixo:

“A criminalização das mulheres e de todas as lutas libertárias é mais uma expressão do contexto reacionário, criado e sustentado pelo patriarcado capitalista globalizado em associação com setores religiosos fundamentalistas. Querem retirar direitos conquistados e manter o controle sobre as pessoas, especialmente sobre os corpos e a sexualidade das mulheres. […] A maternidade deve ser uma decisão livre e desejada e não uma obrigação das mulheres. Deve ser compreendida como função social e, portanto, o Estado deve prover todas as condições para que as mulheres decidam soberanamente se querem ou não ser mães, e quando querem. Para aquelas que desejam ser mães devem ser asseguradas condições econômicas e sociais, através de políticas públicas universais que garantam assistência à gestação, parto e puerpério, assim como os cuidados necessários ao desenvolvimento pleno de uma criança: creche, escola, lazer, saúde. […] Nenhuma mulher deve ser presa, maltratada ou humilhada por ter feito aborto!
Dignidade, autonomia, cidadania para as mulheres!
Pelo fim da criminalização das mulheres e pela legalização do aborto!”

Imagem disponibilizada pela Frente Pelo Direito ao Aborto [50].

Como pudemos ver neste artigo, o aborto é uma questão muito complexa no Brasil, misturando questões de moral religiosa e secular, direitos humanos, conflitos políticos e questões de gênero [53]. Não há grande concordância nem entre aqueles que lutam do mesmo lado da fronteira pró-escolha / pró-vida. É difícil não tomar lados nesta discussão que parece não ter fim, e que cresce a cada dia no Brasil. Blogueiros e ativistas mais exaltados dos dois lados trocam palavras agressivas e acusações, e alguns auto-proclamados ativistas pró-vida chegam ao ponto de dizer em comunidades de defesa da vida no Orkut que toda abortista deveria morrer de forma terrível, em uma contradição que seria cômica se não fosse tão grave a situação.

Afirmações contraditórias a parte, nós continuaremos ouvindo e amplificando as vozes que falam sobre os Direitos Humanos — mulheres ou fetos não-nascidos — no Brasil, e esperar que a melhor solução seja encontrada.