Angola: E o mercado histórico veio abaixo

Largo de Kinaxixe em 1969, com o mercado ao fundo. Foto de Victor Santos. Veja o album de fotos de Luanda nos anos 70.

À semelhança do que aconteceu com o belíssimo Palácio D. Ana Joaquina, o histórico Mercado Municipal do Kinaxixi foi abaixo após um longo tempo de espera que oscilou entre a reabilitação e a demolição. Muitos, como Diuska, ainda não acreditam que viram o mercado ir abaixo:

Esse emblemático local de Luanda, de onde a minha avó recorda os cheiros e as cores de que tanto fala. Onde ia comprar as suas frutas, antes de ir para casa no Largo Ferreira do Amaral, logo ali ao lado, está a cair de uma forma cruel. De uma forma imposta, que não era suposto ser. O Kinaxixi tem o inalienável direito de cair por si próprio!
Nunca pensei que fosse ver deuses e homens aliados numa só missão: deitar o Kinaxixi abaixo. Não sei quem engendrou este esquema, não sei quem esteve na origem desta acção, mas com certeza não me vou esquecer do boquiaberto ar dos transeuntes a olharem o pó a subir no ar.

Foto exclusiva do dia da demolição do Mercado de Kinaxixi, gentilmente cedida por José Manuel Lima da Silva, usuário Kool2bBop do Flickr

Até 2003 aquele espaço histórico funcionava como o grande mercado de frescos da cidade de Luanda, mas as coisas começaram a mudar após a retirada e transferência dos comerciantes locais para outros mercados. Na altura falava-se em reabilitação e era isso que os comerciantes e a população esperavam, mas dois anos depois o mercado estava votado ao abandono e surgia o anúncio de alienação daquele espaço a uma empresa privada.

Seguiu-se então o primeiro projecto desenvolvido por uma empresa com parceiros lusos e que previa a não-destruição total do mercado. Por qualquer motivo, o projecto inicial e desconhecido para o grande público, deu lugar ao plano de construção de um centro comercial ligado ao grupo Macon – empresa de transportes públicos. O investimento para o centro comercial está orçado em cerca de 30 milhões de dólares para uma concessão de 20 anos.

Segundo Anabela Quelhas, que desde 2006 vem fazendo campanha pela renovação de Kinaxixi, o caminho até à demolição é quase sempre o mesmo, e reflete a desvalorização patrimonial em face do poder económico, e não só em Angola que acontece desse jeito:

Falta de manutenção
Não adaptação às novas exigências.
Conflitos intencionais com o tráfego envolvente.
Concorrência selvagem dos shopings
Fiscalização exagerada
Aceleração da degradação
Acumulação de lixo
Por os média a falar nas alternativas e a manipular a opinião publica
Dar visibilidade à degradação do espaço físico
Esquecer o que dizem meia dúzia de intelectuais
Proporcionar que o edificio seja suporte de grafittis e publicidade
Permitir a ocupação ilegal de preferência por marginais
Demolição ou incêndio

As opiniões se dividem. O desagrado dos luandenses reflecte-se no seguinte texto retirado do blog de Mankakoso:

Esta para mim é mais uma estupidificante aberração de espírito destes tipos. Não sei como querem ter empreendimentos do primeiro mundo, coisas da mais alta tecnologia quando não conseguem resolver problemas da idade média como o saneamento básico. Estou já a ver o filme. À noite o shopping todo iluminado e os prédios ao redor às escuras e fedorentos. De dia os transeuntes feito um enxame de moscas à volta do shopping e as varandas dos cúbicos (casas) com os estendais prenhes de lençóis encardidos e esburacados. As zungueiras (vendedoras de rua) a venderem sacos de plásticos, biquínis, sandes de atum, chouriçadas e os miúdos da rua a lavarem os carros no parque de estacionamento do shopping Kinaxixi. As lojas do shopping sem telefones para puderem mandar faxes ou emails aos seus fornecedores no estrangeiro e não só. As casas do shopping sem água, etc. Amigos, precisamos de shopping sim senhor. Mas antes necessitamos ter água canalizada sempre, luz todos os dias e comunicações. Precisamos ter estradas asfaltadas ao invés de esburacadas para permitir maior fluidez de tráfego rodoviário de modo a que os camiões com bens para o shopping não fiquem encravados nos chamados engarrafamentos rotineiros desta cidade. Ouvi vários comentários sobre a construção do shopping Kinaxixi sobre os milhões de dólares que vão ser gastos e concluí: nós somos vaidosos. Qual é a importância deste shopping para aquele angolano sem escola, sem hospital, sem luz eléctrica e sem água corrente?

Os arquitectos angolanos e portugueses estão arrepiados com este massacre histórico e embora tenham protestado contra a demolição e organizado uma petição, as suas vozes não foram ouvidas e nada puderam fazer para salvar o mercado. Manuel Correia Fernandes, arquitecto luso afirmou ao jornal português o Público que “só podemos chorar lágrimas de todo o tamanho perante este acto bárbaro. Era uma arquitectura de enormíssima qualidade, um belíssimo exemplar do modernismo corbusiano, mas com uma grande autonomia”.

Foto exclusiva, gentilmente cedida por José Manuel Lima da Silva, usuário Kool2bBop do Flickr

O mercado do Kinaxixi foi construído na década de cinquenta sob a batuta de Vasco Vieira da Costa, arquitecto português formado pela Escola de Belas-Artes do Porto, Portugal. Viajou para Paris e por lá trabalhou durante algum tempo com o arquitecto francês Le Corbusier. O Mercado Municipal de Luanda foi a sua primeira obra na capital angolana. Kianda, que cresceu indo ao mercado com o pai nas manhãs de sábado, destaca:

É um edifício referenciado nos livros de arquitectura universal como uma referência conceptual e construtiva, o edificio reflecte os elementos base do pensamento sobre arquitectura tropical, ou seja a ventilação cruzada, o recurso ao grande pé direito, a luminosidade controlada, as protecções a poente no percurso da incidência solar, as relações espaço/ventilação, humidade/conforto térmico.

Conforme foi dito nas primeiras linhas deste texto, o governo angolano fez algo semelhante há cerca de dez anos com o Palácio Ana Joaquina, construído durante o século dezoito, classificado como “Imóvel de Interesse Público” em 1951 e alvo de apreciação técnica por especialistas da UNESCO há alguns anos atrás, tendo sido ressaltada a importância daquele edifício. E apesar dos protestos feitos por especialistas e técnicos em história e arquitectura, o governo levou avante a destruição do palácio para logo em seguida construir uma réplica que funciona hoje em dia como Tribunal Provincial de Luanda.

Opiniões divididas

Alguns, no entanto, acham que são sinais de tempos modernos, como OTB, um dos mais de sessenta comentaristas no post do blog Kianda citado cima:

Quanto ao Kinaxixe. Chão com ele. Os paises têm de se modernizar. Deixemo-nos de lamechiches e de prendermo-nos a antiguidades. O mundo é dinamico, a vida é dinamica. Deite-se abaixo e construa-se algo que seja util aos Angolanos. Ana Joaquina foi o inicio, Kinaxixe a seguir e outros irão abaixo para termos uma Angola Moderna e sem lembranças de um passado condescendência servil.

a especulação imobiliária desenfreada

Para quem como eu cresceu passando todos os domingos por aquele mercado em direcção a classe central da Igreja Metodista, não é fácil aceitar um tamanho atentado contra o património da nossa cidade.
Não estamos, obviamente, contra o surgimento dos shoppings nem dos arranha-céus, mas não podemos aceitar que eles nasçam destruindo tudo quanto é história e memória desta cidade, num país, onde o que mais existe é espaço de sobra o desenvolvimento de novas urbanizações, para a edificação de novas cidades.

Foto exclusiva, gentilmente cedida por José Manuel Lima da Silva, usuário Kool2bBop do Flickr

12 comentários

  • Albertina

    Sinceramente ontem quando recebi uma mensagem com uma foto de um amigo que está em Luanda não queria acreditar!!!!
    Não há mais nada a dizer. Tristeza é a palavra para uma monstruosidade dessas.

  • Manuel Correia Fernandes

    O comentário de OTB (?) que transcrevo “Quanto ao Kinaxixe. Chão com ele. Os paises têm de se modernizar. Deixemo-nos de lamechiches e de prendermo-nos a antiguidades. O mundo é dinamico, a vida é dinamica. Deite-se abaixo e construa-se algo que seja util aos Angolanos. Ana Joaquina foi o inicio, Kinaxixe a seguir e outros irão abaixo para termos uma Angola Moderna e sem lembranças de um passado condescendência servil.” é a visão típica do inculto militante e do ignorante empedernido que não gosta de saber de onde vem nem para onde vai! Por este caminho jamais terá qualquer Angola (nem Moderna enem outra) porque alguém, pensando exactamente como ele, deitará ao chão o que ele hoje quer construir e assim sucessivamente…! São mentes deste tipo que hão-de levar Angola à idade da pedra.

  • Yara Catila dos Santos

    Olá, tenho 22 anos sou estudante de Arquitectura e Urbanismo, comecei em Luanda actualmente continuo os estudos no Brasil… eu cresci no kinaxixi, o mercado foi a primeira praça que conheci ou aprendi a comprar algo, vivia bem em frente dele. Não quis acreditar que realmente foi demolido. E por acaso neste site vejo comentarios que não me convenceram ….O mercado fazia parte da história de arquitectura em Angola.
    Se queremos um país modernista temos que pensar antes em URBANIZAÇÃO, além de edificios enormes ou shoopings lindos… Urbanização é falar de melhorias do impacto ambiental como redes esgoto, engarrafamento, energia electrica, etc tem que apresentar significativos benefícios para os habitantes. A construção de um shooping não vai mudar Luanda ou Angola, so vai aumentar o engarrafamento na baixa.
    Se queremos ser modernistas temos de o ser também na saúde, nos transportes públicos , no salário minimo… Em luanda existe quem não sabe ou nunca viu um chuveiro, uma torneira, ou o que é a energia electrica incrivel não é? vamos gastar milhoes com um shooping que sabemos que não será acessivel pra todos. Tomará que as eleições tenham ajudado em muita coisa.
    Por incrivel que pareça a arquitectura é tão avançada que não havia necessidade de demolir a praça no seu todo, podia-se manter a forma do mercado ou a planta e reabilitar de uma forma moderna…
    MODERNISMO não são apenas torres ou aranha céus e por ai… Temos de pensar melhor se queremos uma luanda moderna tem de ser acessível a todos, é impossivel acabar com todos problemas mas podemos amenizar… não é um shooping que vai amenizar.

    Da idade da pedra são todos aqueles que querem correr sem antes saber andar!… Sabemos todos que Luanda acabou de aprender a gatinhar…

  • Paula Barros

    Olá!! Como estudante de Arquitectura Paisagista assusta-me um pouco a forma como alguns países africanos estão a ser “re”construídos, não se organiza o território, não há um ordenamento do mesmo nem um estudo do património tanto arquitectónico como paisagístico existente e a preservar….limita-se a querer substituir muito do que já existe e que faz parte da cultura do país e da história das cidades e dos povos que nelas habitam por elementos muitas vezes sem significado algum, meras cópias de exemplos europeus, imagens que muitas vezes nada têm a ver com a cultura africana. No mínimo deveriamos procurar aprender com os erros já cometidos pelos paises mais desenvolvidos e não copiá-los cegamente para depois tal como esses mesmos países ter de passar a vida a correr atrás do prejuízo.

  • Paula Barros

    Sou africana, de origem santomense, finalista, aos 22 anos fico a pensar naquilo que hei-de encontrar pela frente quando voltar as minhas raízes.

  • Cabuenha Janguinda Moniz

    kamba Yara Castanha

    Luanda è menos assim uns lhe amam e outros lhe odiam com todo amor. . .
    Ja virou dose que vai em moda depois vira eco fopi kinaxixi, uns ali no marginal ja foram tb pra km nao reparou e o nosso Elinga tb ja esta com os dias contados. . .
    Knt a U.r.b.a.n.i.z.a.ç.a.o e foi msm s.o.l.e.t.r.a.d.a tera que ser mentalmente 1° depois vamos a terra a terra. . .

  • Eva Almeida

    Sou angolana e vivi 26 anos em Angola. Deslocava-me ao mercado Kinaxixi a pé para fazer compras. Tenho imensa pena que ele esteja agora em escombros e destruida a sua história. A Pátria Angolana perde um símbolo histórico que jamais se irá recuperar. O mercado tinha vida, sorria, chorava e cantava alegre com as vendedoras. Gentilmente, Eva almeida.

  • COSTA PEREIRA

    Nasci em Luanda em 1944. Os meus pais viveram nessa querida Angola, cerca de 60 anos. Aí construiram a sua vida e aí tiveram os seus três filhos. O meu Pai era o dono da SAPATARIA DANDY na baixa de Luanda. Era querido por toda a gente, empregados e amigos, Angolanos e outros. Os meus pais AMAVAM essa TERRA,embora tenham passado por grandes dificuldades e sacrificios, quando aí chegaram. Gosto de ver a minha CIDADE crescer em Altura pois vai ser uma das grandes Capitais Africanas. Estou certo que também vão ser construidos Grandes Hospitais, Escolas Primárias, Liceus, Universidades, por todo o País, pois o nosso Presidente, José Eduardo dos Santos é um LIDER de GRANDE ESTATURA. Eu ACREDITO NELE. Deus lhe dê muita saúde e força para levar essa grande obra para a frente, para bem de todos os ANGOLANOS. Peço-vos, não deixem nunca mais os estrangeiros mandarem em vocês. Os empregos têem de ser dados aos ANGOLANOS. BEM HAJAM. UM GRANDE ABRAÇO PARA TODOS OS MEUS IRMÃOS ANGOLANOS.

  • sou angolano natural de cabinda, nunca vi o mercado do kinaxixi infelizmente, mas desde q me mudei pra luanda, ouço muitos rumores entre os meus colegas de arquitectura sobre o tão falado metrcado do kinaxixi, e doe me tanto como se tivesse cruzado no mesmo, como arquitecto, defacto também venho lamentando, muito sobre a gestão dos imóveis cá em luanda principalmente, sua urbanização não prevista e tanto mais, contudo acho que devemos procurar uma maneira de evitar certas decisões ou demolições que so venham acabr com a historia e simbolos da arquitectura angolana.

  • Níria Leitão

    Não é a primeira vez que comento sobre o assunto, e sempre que me deparo com qualquer tipo de explanação sobre o “nosso património Kinaxixi”, não consigo ficar indiferente!… É impossível para mim!!!
    Dói-me o coração sempre que penso ou vejo imagens sobre esse assunto!!!
    Para não mais repetir o que já foi dito sobre a arquitectura, sobre o movimento moderno que a estrutura do mercado tinha e a história de que este “fez” parte, pergunto:
    Com tantas escolas que não apresentam sustentabilidade nenhuma para permanecer em funcionamento, com tanta coisa TRISTE que se edifica nessa cidade (independentemente de quem financie estas ABERRAÇÕES)… a preocupação foi “tirar vantagem que a localização do mercado fornecia?”, foi “obter lucros para benefício dos que já têm tudo?”… E mais uma vez então, abafarem as vozes de quem se opôs dando o seu parecer sobre tudo isto???
    Como queremos que o país melhore, se é inibida e ignorada a opinião de especialistas (para o caso, arquitectos, urbanistas…) e de quem viu e vê as tolices que acontecem pelo país em prol do tal “modernismo” que, de modernismo, só tem mesmo o nome!!!
    Acordem!!! É preciso investir na educação, saúde, habitabilidade, sustentabilidade!!!
    Como já disse algures, espero que um dia a organização que preserva o património cultural mundial, peça contas sobre este acto que para mim, em uma palavra, significa: VANDALISMO!!!

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