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Brasil: Disputa de terras indígenas e iminência de guerra civil

Categorias: América Latina, Brasil, Etnia e Raça, Guerra & Conflito, Indígenas, Meio Ambiente, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo, Protesto

Enquanto os direitos dos índios de todo o mundo estão sendo celebrados nesse sábado (9/08), Dia dos Povos Indígenas, uma disputa de terra no Brasil está trazendo o país à beira de uma guerra civil. Uma disputa histórica entre rizicultores e tribos indígenas em Roraima, estado que faz fronteira ao norte com a Guiana e a Venezuela, começou a se agravar em abril, e com o aumento da violência, teme-se que os frequentes confrontos acabem em um conflito nacional.

Um vídeo divulgado pelo Conselho Indígena de Roraima [1] (CIR) e pela ONG Survival International [2] [en] flagra o momento em que pistoleiros, de acordo com os índios contratados pelo fazendeiro e político local Paulo César Quartiero, atacaram a tribo indígena Makuxi [3].

Aviso: Esse vídeo contém cenas de violência e ferimentos que muitas pessoas podem considerar fortes.

Estima-se que 18.000 índios das tribos Ingarico, Macuxi, Patamona, Taurpeng e Wapixana vivem na área conhecida como Serra Raposa do Sol. Os conflitos se intensificaram em 2005, quando o Governo ratificou oficialmente os limites atuais da reserva de 4,2 milhões de hectares. O decreto também definiu que as Forças Armadas e a Polícia Federal deveriam proteger o território. Desde então, a maioria dos criadores de gado e rizicultores deixaram a região, para tanto recebendo compensação por parte do governo.

No entanto, o processo de demarcação vem sendo questionado pelo governo do Estado Roraima, que exige que a reserva seja reduzida em tamanho e afirmando que 46% do território do Roraima já está em mãos indígenas, e mais um alargamento da reserva constitui um obstáculo ao desenvolvimento econômico do estado. Ao longo das décadas, famílias assentaram-se e têm cultivado as terras, desde que a primeira geração invadiu o então não-regularizado território indígena. Apesar da sua ratificação, um pequeno grupo se recusa a sair e argumenta que apenas 1% ou menos do território é por ele ocupado. As tentativas de remover esses fazendeiros foram interrompidas em abril de 2008, quando a violência eclodiu.

Agosto do desgoto

O governo favorece as tribos indígenas, mas desde o início do conflito a sua política indigenista tem sido amplamente criticada por muitos setores da sociedade, incluindo alguns líderes militares. A decisão está agora nas mãos do Supremo Tribunal Federal, que deve decidir neste mês de agosto se o governo poderá continuar o despejo dos rizicultores ou anular a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Há uma preocupação em torno dessa decisão: se o Supremo Tribunal decidir em nome dos rizicultores, criará um precedente e outras já demarcadas e ratificadas terras indígenas podem vir a ser igualmente questionadas.

Os blogueiros brasileiros têm opiniões divergentes sobre a questão. O ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai), Mércio Pereira Gomes [4], está promovendo uma enquete online onde as pessoas podem opinar sobre qual resultado elas esperam para a decisão do Supremo Tribunal Federal. Até agora, 253 pessoas votaram, com 34% delas achando que o tribunal manterá a ratificação da terra feita pelo presidente Lula em 2005, enquanto 39% acreditam que uma nova demarcação será decidida:

Está todo mundo ansiosíssimo sobre o que sairá do STF. Basta ver ao lado o placar da enquete sobre esse assunto. Quase meio-a-meio entre os que acreditam que o STF vai manter e os que acreditam que ela vai mandar refazer a homologação de Raposa Serra do Sol. Hoje mesmo está havendo no Ministério da Justiça um debate com alguns antropólogos, o jurista Dalmo Dallari e o próprio governador do estado de Roraima sobre Raposa Serra do Sol. Debate para tentar influenciar a decisão do ministro Ayres Britto, que, segundo ele mesmo, a decisão e o voto já foram feitas.

Aldenor Jr [5] também parece prever qual será a decisão, e teme que haverá ainda mais violência:

Enquanto os ministros não firmam uma posição definitiva, os ocupantes ilegais das terras públicas, incentivados pela meia dúzia de grandes rizicultores, preparam a guerra. Há denúncias de que, nas últimas semanas, teriam entrado na região armas, munições e um contingente ainda maior de pistoleiros, que ocupam posições ofensivas nas proximidades das aldeias Macuxi. A qualquer momento, sem qualquer aviso, a violência poderá explodir sem controle.

O intenso lobby a favor do esfacelamento do território indígena, realizado por políticos identificados com gananciosos e obscuros interesses, não parou de trabalhar durante o recesso, lançando sóbrias expectativas sobre o desenlace da polêmica em plenário. Haverá ainda tempo para inverter essa tendência?

Por outro lado, José Correa Leite [6] acredita que há apenas um resultado possível. Se a decisão for diferente, ela revelará em qual a direção, em termos de interesses, o Brasil ruma:

A população de Roraima não chega a 400 mil habitantes. Para os cerca de 350 mil não-índios há quase 11 milhões de hectares de terras disponíveis, diz estudo do Instituto Socioambiental. Comparando, Pernambuco tem 9,8 milhões de hectares para cerca de 8 milhões de habitantes.
A defesa das nossas fronteiras na Amazônia sempre receberam grande contribuição das comunidades indígenas. Por exemplo, pela incorporação de seus jovens ao Exército para ações em áreas aonde ninguém quer ou sabe ir.
Assim, não há razão concreta, de natureza social ou de segurança, para desconstituir a terra indígena Raposa Serra do Sol. A decisão do Supremo, seja qual for, dirá algo relevante sobre o compromisso do Estado na defesa de uma das principais raízes de nossa identidade cultural, e sobre seu dever de protegê-la, mesmo contrariando interesses ou remando contra marés de incompreensão momentâneas.

Charge de Latuff

O outro lado

Em uma série de quatro longas postagens, Adelson Elias Vasconcellos [7] explica porque ele acredita que o governo precisa rever os critérios que o levaram a aprovar a demarcação da Reserva Raposa do Sol em 2005 “com grande urgência”:

E muito deste dolo se deve ao fato de Lula ter assinado, na ONU, em 2005, o protocolo que torna o Brasil signatário da Declaração Internacional de Autodeterminação das Nações e Povos Indígenas que, se homologadas pelo Congresso, será incorporada à Constituição do Brasil, e partir deste momento, toda e qualquer tribo, nação ou etnia indígenas, poderá declarar-se independente do Brasil. Em números reais, hoje seria 216 novos países que resultaria na perda de mais de 13% de nossa área geográfica, sendo que 90% disto em terras da amazônia. Dá para perceber o forte inteesse estrangeiro na questão da homologação de terras indígenas?

Fernando Rizzolo [8] tem uma opinião parecida:

Só quem não conhece geografia, mal intencionado, ou extremamente leigo, consegue dormir em paz deixando nossas fronteiras abertas numa região perigosa; e não preciso nem dizer porquê.

Bob Back [9] também acredita que algo além dos interesses indígenas está em pauta:

A região tornou-se alvo de interesses estrangeiros, de mineradoras e até de governos, que alimentam a esperança de conseguir arrancar uma lasquinha fresquinha do Brasil. Atuam ali ONGs com interesses excusos.
Colocando-se de ponta-cabeça o mapa do Brasil, este assemelha-se a um imenso presunto, de quem a comunidade internacional busca tirar um pedacinho, alimentando em nossos índios a esperança de tornarem-se em breve uma nação independente do Brasil.
Por iso, convém dizer que só pode haver soberania onde há autoridade. A reserva Raposa do Sol tornou-se terra-de-ninguém, em clima de verdadeiro faroeste.
Até que o cherife apareça para pôr ordem na casa e dizer a que veio…

Debate e mobilizações

Altino Machado [10], junto com o coletivo Makunaima Grita [11], está entre os muitos blogueiros divulgando um abaixo-assinado online [12] em apoio aos povos indígenas de Raposa Serra do Sol, que até agora conta com mais de 2.000 assinaturas, e que deve ser enviado ao Supremo Tribunal Federal antes do dia 27 de agosto, data na qual o destino do território deve ser decidido:

Enfatizamos na petição que a Constituição completa 20 anos em outubro e a decisão do Supremo Tribunal Federal no caso da Raposa Serra do Sol precisa honrá-la, resgatando a dignidade aos povos indígenas, fortalecendo nossa democracia pluralista e o Estado Democrático de Direito no Brasil.

Em um artigo muito relevante, Sakamoto [13] revisa a forma como o assunto está sendo divulgado na imprensa e comenta sobre o debate caloroso que acontece no momento:

O debate está assumindo níveis de ignorância explícita. Já ouvi jornalistas afirmarem que se trata de uma “interdição” de uma área do tamanho de Sergipe para uma populaçao indígena de alguns milhares, comparando a situação com a de trabalhadores rurais sem-terra que esperam a reforma agrária. Primeiro, é um grande erro comparar culturas tão diferentes e tão díspares. Índios caçam e para isso precisam de uma grande área, enquanto nós podemos escolher nossos produtos industrializados e com conservantes nas prateleiras de qualquer supermercado. Isso sem falar das mudanças de roçado e nas suas áreas místicas. E não são as reservas indígenas o entrave da reforma agrária no Brasil. Sabemos que o problema está mais para a política do que a para a antropologia.

Sakamoto [13] encerra com uma dose de ironia, dizendo que no Brasil os índios têm sido “trocados por boi com o apoio e a conivência da sociedade civil”:

Índios vem sendo mortos freqüentemente. Assim como árvores são transformadas em tábuas. E nunca ninguém precisará saber ao certo quem faz isso porque, na verdade, não estamos mesmo interessados. Que a vida siga como ela sempre foi: nós com nossas reservas intocadas sem gente, os estrangeiros com suas mesas de madeira maciça, carne em abundância e soja barata, os latifundiários com grandes pastos, políticos com férias em Angra e os trabalhadores com seus empregos efêmeros. Do que nos interessa a vida de um grupo de índios, empurrado de um lado para outro, cumprindo pena por ter subvertido a ordem nacional?

Cerca de 11% do território brasileiro e quase 22% da Amazônia está na mãos dos povos indígenas. A constituição brasileira de 1988 determinou que todas as terras indígenas ancestrais fossem demarcadas e devolvidas às tribos dentro de cinco anos.