Brasil: O Presidente Negro Antes de Obama

O arrebatador fenômeno Obama atingiu o Brasil, o que não é surpresa em se tratando do país com a maior população afro-descendente do mundo. Os blogs estão comentando todo tipo de coisas sobre Obama, desde seu apoio ao Etanol até os ‘rumores’ sobre sua apreciação a respeito da política brasileira de software livre. Uma linha de comentários especialmente notável é a que trata da redescoberta de um romance brasileiro de ficção científica estranhamente interessante – O Presidente Negro – de 1928. O romance previa as eleições presidenciais dos Estados Unidos no então distante ano 2228 onde competiriam um candidato negro, uma feminista e um conservador.

O autor, Monteiro Lobato, é muito famoso no Brasil por seus contos infanto-juvenis. A coleção de livros ‘Sítio do Pica-pau Amarelo‘ foi transformada numa série de TV de muito sucesso que reinou soberana nas telinhas brasileiras em 5 versões diferentes – a primeira em 1952, e a mais recente em 2001. Mas neste caso, o livro é uma incursão obscura e rara de Lobato no mundo da ficção científica para adultos. O ressurgimento do interesse nessa obra agora está intimamente ligado ao que se destaca como uma inacreditável e intuitiva previsão do que viria a ser nossa situação atual, mas há 80 anos! Quase inimaginável!

Para a maior parte do público leitor brasileiro, Monteiro Lobato (1882-1948) é lembrado pelos episódios da série O Sítio do Pica Pau Amarelo. Muitos, porém, desconhecem a “obra para adultos” que Monteiro Lobato escreveu… Originalmente publicado em 1926, como folhetim, no jornal A Manhã, (onde recebeu o título de “O Choque das Raças”, hoje seu subtítulo), “O Presidente Negro” é uma obra duplamente curiosa: primeiramente por se tratar de uma ficção científica, gênero pouco cultivado entre os escritores brasileiros; e em segundo lugar porque em sua trama retrata o debate científico e intelectual vigente nas primeiras décadas do século XX.
O Presidente Negro de Monteiro LobatoALPHARRÁBIO – por Viegas Fernandes da Costa

A enorme coincidência com as eleições americanas foi suficiente para fazer de “O Presidente Negro” uma leitura ‘cult’, apesar de outras previsões de Lobato, como sua descrição da Internet, também terem chamado a atenção dos comentaristas. A psicologia política distorcida do triângulo formado pelo homem branco, a feminista e o candidato negro também é evidente.

O Presidente Negro é um livro assustador. Assustador em vários sentidos. Primeiro pelo caráter premonitório da obra. Em 1926, Lobato prevê a invenção de um tipo de radio transmissão de dados que possibilitaria o ser humano a cumprir suas tarefas da própria casa e sem a necessidade de se deslocar para o trabalho. Fala também do desaparecimento do jornal impresso porque as notícias serão “radiadas” diretamente para a casa dos indivíduos e aparecerão em caracteres luminosos numa tela – exatamente como acontece com quem está lendo esse texto. Em uma palavra atual: internet. Mas as premonições não param por aí. Às vésperas de viajar para os Estados Unidos como adido comercial da embaixada brasileira, Monteiro Lobato preconiza a eleição de um presidente negro nos EUA. O momento político (no ano de 2228) que possibilitaria isso viria da divisão da raça branca, entre um candidato do Partido Masculino (Kerlog) e uma candidata do Partido Feminino (Evelyn Astor). A neofeminista Evelyn Astor está com a vitória praticamente garantida e eis que surge o líder negro Jim Roy, que acaba eleito presidente.
O Presidente Negro. Um livro assustadorAcerto de Contas

As guerras igualmente foram extintas, tão logo os Ministérios da Guerra foram trocados pelos da Paz. Apesar disso, os EUA estão prestes a mergulhar no caos e no sangue às vésperas da eleição de seu 88º presidente, de tal forma o pleito cindiu a população. De um lado, estão agrupados os milhões de eleitores pretos, que apóiam Jim Roy, da Associação Negra. De outro, as mulheres brancas que seguem a candidata do Partido Feminino, miss Evelyn Astor. E, por fim, há os homens brancos, que preferem a reeleição de Kerlog pelo Partido Masculino, que fundiu o Democrata e o Republicano. Eis o essencial da trama: não apenas um choque de raças, mas também uma guerra de sexos. Os homens brancos, a fim de embranquecer os EUA, planejam enviar os negros para a Amazônia, que já não é parte do Brasil. Nosso país foi dividido em dois, independentes: o Norte, de atávica malemolência, e o Sul bem-sucedido, a “grande República do Paraná”, que engloba ainda a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.
Monteiro Lobato… Um Profeta?Resistência Democrática

Mesmo em algumas de suas alusões mais estranhas, Lobato parece seguir criando imagens que, se não são reais, são muito familiares para dizer o mínimo. Mas, numa análise mais cuidadosa, o enredo revela claramente que, embora superficialmente tenha sido bem sucedido, sua interpretação dos sinais fora quase sempre a projeção de conceitos estranhos. Na verdade, o que primeiro chamou a atenção para esse livro – antes mesmo da atual coincidência histórica com as eleições americanas – foi a evidente afinidade de Lobato com a Eugenia, uma filosofia social racista que conquistou alguns seguidores no Brasil nas décadas de 20 e 30, e que defendia a melhoria de traços hereditários dos seres humanos através de várias formas de intervenção, principalmente a segregação de raças.

Miss Jane, filha de Benson, é quem verbaliza as idéias de Lobato: “Que é América senão a feliz zona que desde o início atraiu os elementos mais eugênicos das melhores raças européias? Onde há força vital da raça branca senão lá?”. Defendendo a segregação americana, acrescenta sobre a miscigenação brasileira: “Nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, conseqüente a todos os cruzamentos entre raças díspares”.
Racismo à BrasileiraBravo Online

Na verdade, Obama definitivamente não é o candidato negro do conto de Lobato, mas sim o resultado de uma miscigenação política, cultural e genética com os brancos. Existe uma diferença essencial entre a situação social dos afro-descendentes no Brasil (mais miscigenados) e nos Estados Unidos (mais segregados), mas o fenômeno Obama é percebido por alguns brasileiros como resultado das políticas de ações afirmativas americanas dos anos 70 e esses programas sociais aparecem agora como o fator da mudança.

Do ponto de vista brasileiro, a pergunta inevitável que os afro-descendentes estão se fazendo agora é o que possibilitou o sucesso de Obama nos Estados Unidos – com toda a segregação e o separatismo – enquanto uma situação semelhante, no tão miscigenado Brasil, ainda parece um sonho distante, longe de se tornar realidade.

Contrariando expectativas que já duram mais de cem anos, no Brasil, “país com a maior população afro-descendente fora da África”, “negros e pardos vão superar o número de brancos neste ano” de 2008… As afirmações, acompanhadas da constatação de que o país “não tem um único político negro de projeção nacional”, vem a propósito da candidatura do senador Barack Obama à presidência dos Estados Unidos… Atrasados em pelo menos cinqüenta anos com relação às conquistas sociais do povo negro nos Estados Unidos, no Brasil, nós, herdeiros do mesmo brutal despojamento que plasmou a sociedade norte-americana (e do qual Obama, esclareça-se, não é vítima direta) vimos sendo, há mais de 120 anos forçados a acreditar que neste país “alegremente mestiço e desracializado”, nunca houve segregação nem ku-klux-klan, e que nossa inferioridade deve-se apenas a problemas econômicos e pode ser zerada com boas escolas e boas merendas para todos.
OBAMA, SUA ÉPOCA E O SONHOAldeiaGriot

No debate em andamento a respeito de ações afirmativas e nos diferentes pontos de vista sobre o sistema de cotas, é muito comum que, no Brasil, se veja o sucesso de Obama em termos de antigos conflitos, mas os efeitos de sua possível eleição podem repercutir de modo diferente nas diversas camadas culturais. Se for eleito, a psicologia profunda que está por trás do surgimento de uma personagem tão arquetípica na história tornar-se-á parte do debate sócio-político-cultural.

Alguns blogueiros estão cientes desta complexidade herdada de Obama que está ajudando a transcender as polaridades óbvias.

Quando, anos mais tarde, condenou a Guerra do Iraque, ele argumentaria com base nas conclusões que tirou da vida. Seus pais tentaram se reinventar abandonando as tradições e, no processo, perderam a própria identidade. A tradição é o que dá liga à sociedade. Perante a mudança, a tradição sempre resiste. Mudança, na história, vem a passos lentos. Para ele, há ingenuidade no ideal do sonho americano de que idéias, por si, causam grandes mudanças. Idéias não bastam. Barack Obama, como o descreveu Larissa MacFarquhar num perfil para a revista The New Yorker, ‘é profundamente conservador’. Democracia não seria simplesmente imposta num país onde ela jamais existira.
Quem é e o que pensa Barack Obama?Pedro Dória Weblog

Tanto o presidente negro de Monteiro Lobato, prevalecendo num contexto de separação, quanto o perfil complexo de Barack Obama, num mundo de possibilidades emergentes, surgem agora como um meio de mudança política.

6 comentários

Cancelar esta resposta

Junte-se à conversa -> Daniel Duende

Colaboradores, favor realizar Entrar »

Por uma boa conversa...

  • Por favor, trate as outras pessoas com respeito. Trate como deseja ser tratado. Comentários que contenham mensagens de ódio, linguagem inadequada ou ataques pessoais não serão aprovados. Seja razoável.