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Cabo Verde: Adolescente, grávida e barrada na escola

Categorias: África Subsaariana, Cabo Verde, Ativismo Digital, Direitos Humanos, Educação, Juventude

No passado dia 28 de Maio de 2008, uma jovem cabo-verdiana estudante do 11 ano, na Escola Secundaria Januario Leite, no concelho do Paul, foi convidada a anular a sua matricula por motivo de parto. Indignada com esse amargo sabor da discriminacao feminina nas escolas cabo-verdianas, Ana Rodrigues escreveu uma carta para a Sra. Ministra da Educacao, suplicando pelo direito de continuar os seus estudos, sem uma interrupcao indesejada neste ano lectivo preste a findar. Diante deste caso e tendo conhecimento de outros casos, exigimos um enquadramento especial para as gravidas nas escolas, deixando claro que nao queremos incentivar a gravidez precoce, mas combater o abandono escolar e a discriminacao que a referida medida de suspensao implica. Subscreva esta peticao a favor da aluna Ana Rodrigues e deixe a sua opiniao sobre essa medida de suspensao. Concorda ou nao com a medida de suspensao das gravidas das escolas?

O trecho acima foi retirado da petição contra a decisão da escola [1], cujo link tem circulado pela blogosfera caboverdeana. Até agora, o abaixo-assinado online, organizado pelo Movimento da Cidadania e Blogs de Cabo Verde, já foi assinado por mais de 220 internautas, e o apoio não pára de crescer. Muitos dos blogueiros da ilha estão escrevendo sobre o assunto, alguns deles gerando um bom debate sobre direitos humanos, educação sexual e hipocrisia da sociedade. Veja abaixo uma ronda das fortes reações, começando com Eurídice Monteiro [2], a primeira blogueira a exigir uma tomada de atitude:

Fiquei furiosa ao saber da situação da jovem Ana, que, apesar de estar a enfrentar dificuldades económicas acrescidas, é uma das melhores alunas da sua escola, com uma média acima dos 17 valores. Ainda a poucos dias, na Feira do Livro de Lisboa, durante a apresentação da Revista Direito e Cidadania, uma distinta senhora de nome Ernestina Santos contestava a discriminação das jovens e adolescentes grávidas nas escolas cabo-verdianas, como que adivinhando o caso da Ana. Como tenho uma preocupação particular com a feminização do abandono escolar, principalmente no ensino básico e secundário, e com a elevada taxa de gravidez precoce, que condena as jovens e as adolescentes a abandonarem os estabelecimentos de ensino, muitas vezes definitivamente, não podia ficar calada perante este caso.

Foto de NineInchNachosIII

Foto de NineInchNachosIII [3] usada sob licença do CC.

Muitos blogueiros ouviram falar do caso através da postagem acima, e eles rapidamente reagiram. João Branco [4], que acompanhou a maternidade de duas filhas, diz que o acontecido se deu de uma forma surreal:

Andamos a brincar? Uma grávida é uma doente infecto-contagiosa neste país? Onde pára o direito constitucional à educação? Ainda para mais parece que a aluna em causa – Ana Rodrigues – escreveu uma carta para à Sra. Ministra da Educação, suplicando pelo direito de continuar os seus estudos, sem uma interrupção indesejada neste ano lectivo preste a findar. Suplicando? Suplicando por um direito? E se fosse ao contrário? O Estado a suplicar aos cidadãos que paguem os seus impostos, por exemplo. Este caso é um escândalo, fere o direito à educação, pedra basilar do desenvolvimento de Cabo Verde desde sempre. Ainda mais preocupante quando este é um caso tornado público, dando-nos a sensação que muitos mais haverá, similares a este, um pouco por todos os estabelecimentos de ensino.

No entato, uma pessoa não concorda com ele e deixa um comentário. Kuskas [5] diz que sua irmã foi expulsa da escola quando engravidou e perdeu o ano, mas ela estava mais preparada para retornar aos estudos no ano seguinte, com a ajuda da família. Ela também enfatiza que, para começar, os pais são responsáveis por garantir que crianças não engravidem:

João, gravidez não é doença e nem deve ser, mas a adolescente gravida que frenquenta as aulas é prejudicada em relação aos colegas de muitas formas: as faltas são injustificadas (pelo que sei PARTO não é justificação para faltas, pelo menos nas escolas secundárias), nas aulas de educação fisica ela é tratada como as outras alunas e ela não tem direito a licença maternidade. SE as nossas escolas e as FAMILIAS estivessem PREPARADAS para lidar com essas situações, que eu continuo a dizer NÃO È e NÂO DEVE ser NORMAL, não haveria problemas nenhuns.

Foto de Carina

Pintura abstrata de Carina [6] usada sob licença do CC.

Sem ter exatamente uma conexão com o comentário acima, Eileen Barbosa [7] critica essa mesma mentalidade em relação a jovens mães e as pessoas que acreditam que elas terim menos capacidade de concluir seus estudos:

Já ouvi vozes dizerem qualquer coisa como “Unh, não me parece que fique bem ter grávidas a conviver com outros alunos…” Porquê, pergunto? Dá um mau exemplo? Serei inocente quando penso que pode até funcionar do outro jeito: a grávida sente-se mal disposta, a grávida não pode participar nos jogos violentos; quando o bebé nascer, virá com umas olheiras enormes por estar a perder sono… e as despesas… é melhor adiar…

Uma futura mãe precisa, mais do que ninguém, de meios para ganhar a vida e sustentar a cria. Negar-lhe as ferramentas para isso parece-me uma maldade injustificável.

Por motivo de parto

Mais do que garantir que seja dada a Ana Rodrigues a oportunidade de continuar os seus estudos, os blogueiros reivindicam uma investigação na decisão da diretora da escola de forçar a garota a desistir dos estudos, por motivo de “parto”. O aviso, assinado pela diretora Alda Maria Martins Lima, diz o seguinte: “A Direcção da Escola Secundária Januário Leite, vem por este meio avisar aos professores e alunos da turma 11.ºC, Área Económico e Social, que a aluna Ana Rodrigues fica suspensa das aulas por motivo de parto. A mesma deverá pedir a anulação da sua matrícula para o presente ano lectivo”.

Virgílio Brandão [8] publica trechos da constituição que mostra que a todos os cidadãos cabe o direito à edução, e ainda uma parte que diz que “Os agentes do Estado e das demais entidades públicas são, nos termos da lei, criminal e disciplinarmente responsáveis por acções ou omissões de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias”. Em outro artigo muito bem fundamentado, ele lembra aos eleitores que esta não é a primeira vez [9] que uma jovem foi levada a abandonar os estudos depois de ter engravidado. Na verdade, se não for normal, isso é algo que acontece com uma certa frequência em Cabo Verde, e trata-se de um fato que a sociedade e o governo precisam aceitar e lidar de forma mais eficiente:

O extraordinário é que as Instituições que deveriam proteger a infância, a juventude e os direitos humanos em geral não fazem (não fizeram, que eu tenha conhecimento) nada de prático para evitar este e outros males. Quantas Anas existem e já existiram em Cabo Verde? O que aconteceu com elas, depois de decisões como esta? A estatística não deve servir somente a política e a economia, não…

Foto de O Pirata
Foto de O Pirata [10], usada sob uma licença do CC.

Furnas [11] dá vazão à mesma idéia e diz que já passa da hora da sociedade debater esses problemas abertamente:

Se os caboverdianos querem discutir a questão da gravidez na adolescência que o façam de forma séria, madura, ponderada e científica, não na perspectiva moralista e, muito menos de valores pessoais discutíveis e de origem e finalidade duvidosas! Acho que por uma questão de cidadania, que nos toca a todos, deveríamos estudar a possibilidade de entrar com um processo-crime no tribunal contra o estado de Cabo Verde! Está mais do que na hora de começarmos a quebrar o silêncio…

Paulino Dias [12] acredita que debater a questão não é tão simples enquanto as pessoas continuarem a fazer de conta que não vêem o problema.

O problema é mais profundo, minha amiga. Tem a ver com a (re)avaliação da legalidade e da “humanidade” da medida de afastamento das alunas grávidas das escolas, tem a ver com a desconstrução das famílias e dos seus valores que vimos assistindo diariamente, tem a ver com um certo “lavar de mãos” dos pais no que diz respeito à educação sexual dos filhos (sim senhor, isso não é assunto apenas do Ministério da Educação ou das Delegacias de Saúde!), tem a ver com a passividade de todos nós que tranquilamente vamos assistindo a esses “pequenos” dramas e assobiamos para o lado com a consciência limpa de quem pagou já os seus impostos.

Foto de elisnice

Foto de elisnice [13], usada sob uma licença do CC.

De volta a Virgílio Brandão [14], dessa vez em um comentário numa postagem do Cafe Margoso [15] ele compartilha essa anedota sobre uma ex-colega na Faculdade de Direito de Lisboa que teve três filhos enquanto cursava os cinco anos de curso universitário:

Um dia, perguntei-lhe porque é que ela estava quase sempre grávida na altura dos exames e ela respondeu-me, com um extraordinário sentido de humor:

- Virgílio, fico mais inteligente quando estou grávida.