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Brasil: Transformando um infanticídio em um espetáculo

Categorias: América Latina, Brasil, Etnia e Raça, Juventude, Lei, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo

Isabela NardoniNa noite de 29 de março, Isabella Nardoni, 5 anos, foi encontrada em estado grave no jardim do bloco de apartamentos onde vivia com seu pai, sua madrasta e suas duas meias-irmãs, em uma vizinhança de classe média de São Paulo [1]. O zelador do prédio a encontrou depois que ela aparentemente caiu pela janela de seu quarto. Momentos depois, foi dito que o pai da menina entrou correndo no jardim para vê-la, dizendo que alguém deve tê-la jogado pela janela enquanto ele estava na garagem ajudando sua esposa, madrasta de Isabella, a levar as outras duas crianças adormecidas do casal do carro até o apartamento. Minutos depois, Isabella morreu na ambulância.

Uma investigação criminal se seguiu, e a polícia questionou as versões do pai e da madrasta para o caso. Há evidências conflitantes. O caso recebeu cobertura ininterrupta [2] da grande mídia e dos blogues brasileiros. Ainda há um longo caminho a ser seguido pela investigação antes do veredito, mas muitos suspeitam que o pai e a madrasta de Isabella sejam os assassinos da menina.

Esta versão dos fatos foi repetida várias vezes nos últimos dias pela Rede Globo, pela Folha de São Paulo, pelo Estado de São Paulo e muitas outras estações de TV e jornais brasileiros, além de vários blogues pelo Brasil afora.

No passado, os maiores grupos midiáticos do Brasil não foram sempre cuidadosos ao marcar este ou aquele suspeito como culpado de um crime. A polícia e as autoridades brasileiras foram frequentemente pressionadas a dar à mídia as informações e afirmações desejadas por esta para fazer com que indivíduos sob investigação parecessem culpados aos olhos do público mesmo antes da conclusão das investigações. Se, ao final das investigações oficiais, fosse revelado que o real culpado era outra pessoa, os mesmos jornais raramente se preocuparam em corrigir estes erros, rapidamente se voltando para o próximo gol da final do campeonato, para o próximo escândalo político ou morte terrível.

E o circo midiático e troca de acusações já começou no caso de Isabella Nardoni. Sejam culpados ou não do terrível crime, o pai e a madrasta de Isabella já foram condenados sob os holofotes televisivos e nas capas de jornais brasileiros, e um dos maiores colaboradores destas afirmações de culpa é o promotor público responsável pelo caso, Francisco Cembranelli, que já deu várias entrevistas sugerindo acreditar que as investigações irão estabelecer o casal como culpado do assassinato.

Vamos dar uma olhada no que a blogosfera brasileira pensa do caso.

C.Fagundes, do e-esquina [3], nos apareceu com esta imagem [3], comparando a cobertura dada pela Rede Globo ao crime com o reality-show Big Brother Brasil [4], transmitido pela mesma emissora:

Big Murder Brazil

Ismael, do blogue O Malfazejo 2.0 [5], também faz uma piada [6] sobre a “interatividade de reality-show” da cobertura da Rede Globo sobre o crime:

“Breve nos programas do horário nobre da Globo nova enquete interativa: Se você acha que o assassino de Isabela Nardoni é o pai, ligue para 0300-703-584-01. Para votar na madrasta, ligue para 0300-703-584-02. Para votar na mãe da menina, ligue para 0300-703-584-03. […] A ligação é gratuita.”

No dia 9 de abril, Ricardo Noblat, um jornalista que escreve um blogue hospedado pela Globo.com — o portal de internet da Rede Globo — escreveu um post com notícias em primeira mão [7] sobre o caso:

“Foi o pai, Alexandre Nardoni, que jogou pela janela a filha Isabella Nardoni, de 5 anos. A informação foi dada esta tarde pelo promotor Francisco José Cembranelli em conversa reservada com um grupo de jornalistas. No passado o promotor foi professor de Alexandre. Refere-se a ele como “um vagabundo, que sempre viveu às custas do pai, um playboy”.”

No dia seguinte, quando perguntado pelos repórteres sobre as afirmações que Noblat atribuíra a ele, Cembranelli negou ter dito qualquer coisa semelhante, e fez ataques pessoais ao blogueiro-jornalista Noblat. Logo depois disso, mais de 200 comentários foram feitos no post de Noblat — a maioria deles acusando Noblat de fabricar notícias ou basear-se em fontes dúbias para fazer suas afirmações. Até agora, Noblat continua respondendo pacientemente a todos os comentários, mantendo sua fé em suas fontes e naquilo que afirmou a princípio, e acusando Cembranelli de mentir ao negar aquilo que efetivamente disse antes, naquela conversa com jornalistas.

Sobre o promotor Cembranelli, a Academia Brasileira de Idéias Confusas [8] escreveu as palavras abaixo, em seu post entitulado “Qual a maior tragédia? [9]“:

“Já restou mais do que evidente a vontade de Francisco Cembranelli de ter a imagem associada ao um crime bárbaro para aparecer na mídia e ser lembrado pela participação em um caso de imensa repercussão nacional. Transparece, ainda, a vontade de que sejam, efetivamente, os pais os culpados pelo ocorrido, porque nessa hipótese o julgamento será espetacular, com mais holofotes e exposição pública. Se tudo isso decorre de mera vaidade ou se há no ar o cheiro de alguma vantagem decorrente do episódio, é uma incógnita. Em todo caso, parece desagradável que face a um crime tão bárbaro um ou outro sejam satisfeitos.”

Sobre este post, Cranio comentou:

“Neste caso mais uma vez fico pensando se toda midiatização de uma tragédia familiar poderá trazer algum benefício à sociedade. […] será que alguém que pensava em atirar uma criança pela janela irá repensar sua atitude? Será que criaremos leis que impossibilitem este tipo de tragédia? Ou apenas não havia nada de inteligente para veicular nos telejornais e aproveitam-se do gosto por sangue que existe na maioria da população e com isto aumentar seu ibope?”

Guilherme Fiuza [10], um distinto blogueiro-jornalista brasileiro, passou por uma provação semelhante a esta que está sendo imposta agora ao casal Nardoni. Há dezoito anos, ele perdeu seu primeiro filho recém-nascido em um trágico acidente doméstico. No início, Fiuza e sua ex-esposa foram acusados de ter causado a morte do garoto, e seus vizinhos, e pessoas que Fiuza afirma nunca ter visto antes, começaram a fabricar histórias que os confirmavam como assassinos de sangue frio, até que por fim se provou que ele e sua então companheira eram inocentes. Fiuza não menciona se recebeu qualquer pedido de desculpas. Sobre suas experiências do passado e o caso Isabella Nardoni, ele escreve [11]:

“Se não é possível à coletividade imaginar na sua própria pele o ardor da tragédia, já seria um belo avanço civilizatório se ela entendesse, de uma vez por todas, que a vida (dos outros) não é um Big Brother.”

Sobre as apressadas entrevistas dadas pela Delegada de Polícia responsável pelo caso, que disse desde os primeiros dias após a morte de Isabella que “a investigação estava 70% concluída”, Fiuza complementa [12]:

“A delegada do caso Isabella informou que 70% do crime estão esclarecidos. Notícia importante.
[…]
Mas, doutora delegada, e se nos últimos 30% aparecer um personagem novo confessando o assassinato? Nesse caso, doutora, seus atuais 70% serão iguais a zero.
Jamais se viu, em toda a história da investigação criminal, um caso 70% esclarecido. Das duas, uma: ou a delegada é uma revolucionária, ou é uma irresponsável.”

Luiz Carlos Azenha, do blogue Vi o Mundo [13], é outro importante jornalista que largou seu emprego na mídia tradicional para se tornar blogueiro em tempo integral. Ele reflete sobre os interesses da mídia neste caso [14]:

“A máquina de moer carne da mídia não pára. Precisa produzir continuamente. E produzir, sempre, algo sexy. Na pior acepção da palavra. Crianças defenestradas, arrastadas por automóveis¹, vale tudo desde que a morte tenha “valor” de venda. Ou seja, a morte de uma criança por desnutrição, aos poucos, bem diante do prédio da Folha de S. Paulo, na Barão de Limeira, tem valor zero na escala da notícia. Bebês mortos em reservas indígenas e em maternidades já se tornaram parte do trivial.”

¹[Nota do tradutor: Esta é uma menção ao caso do menino João Hélio [15]. Hélio tinha 6 anos de idade quando morreu após ser arrastado do lado de fora do carro da mãe por 11 quilômetros, em uma tentativa de furto do carro. O caso repercutiu em uma série de manifestações contra o aumento da criminalidade no Rio de Janeiro e em demandas de aumento das penas para crimes hediondos. Na semana da morte de João Hélio, outro garoto morreu em circunstâncias similares em outro lugar do Brasil. Nenhum jornal percebeu o fato. Apenas alguns blogues o noticiaram, mas não pude encontrar recentemente mais nenhuma menção a ele. Pode ser que isso não faça diferença alguma, mas João Hélio pertencia à classe média e era branco, enquanto a outra vítima anônima era mais pobre, e tinha a pele mais escura.]