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Brasil: As ‘Cartas sobre Che’ e a credibilidade jornalística

Categorias: América Latina, Brasil, Mídia Cidadã, Mídia e Jornalismo

No começo de outubro, a bem estabelecida revista Veja publicou uma matéria de capa para marcar o aniversário de 40 anos da morte de Che Guevara [1]. Uma semana antes, o editor internacional da revista, Diogo Schelp, entrou em contato com Jon Lee Anderson [2] [en], correspondente internacional da também bem estabelecida revista americana, The New Yorker, e biógrafo de Che.

Anderson concordou em dar a entrevista mas ela não foi adiante; a matéria sobre Che foi publicada e o americano, ao ler o artigo, enviou uma carta ao editor da Veja dando a sua opinião quanto a produção e qualidade da matéria – de acordo com ele um “artigo opinativo camuflado de jornalismo apurado” – e encaminhou essa mensagem a alguns outros contatos que ele tinha no Brasil.

O assunto em outros tempos não teria audiência maior do que grupinhos de colegas nas duas redações, mas a troca de e-mails acabou vazando na blogosfera onde a correspondência alimentou um debate suculento, público e aberto sobre qualidade, imparcialidade e credibilidade do jornalismo brasileiro.

Listas negras

Em uma carta aberta em resposta a Anderson [3], publicado em um dos blogues da Veja, Schelp reclama sobre a falta de ética do repórter da New Yorker ao tornar pública a correspondência trocada e encerra com uma ameaça: “Você pode ficar certo de que não aparecerá mais nas páginas desta revista”. Em outras palavras, ele admite: Veja adere à prática da lista negra.

Pedro Doria foi o blogueiro que deu o furo, primeiro publicando a carta crítica de Anderson [4], seguida da resposta de Schelp [5]. Ele então escreveu uma análise do comportamento de Veja [6] e publicou a tréplica [7] na qual Anderson responde à carta aberta de Schelp. Juntos, esses quatro textos acumulam quase mil comentários. No trecho abaixo, discutindo e resposta de Schelp, Pedro comenta sobre o fato mais preocupante de todos:

Por fim, ele reconheceu publicamente que Veja tem uma lista negra: quem cai lá não sai na revista. Não é o único órgão de comunicação grande que tem uma lista dessas, mas há um motivo pelo qual ninguém assume sua existência. É que não pode ter. Noticia-se, sempre, o que é notícia; e procura-se, sempre, quem melhor pode informar a respeito de um assunto. Quando uma publicação reconhece que tem uma lista negra, está dizendo que não tem pudores de usar sua influência para fazer com que alguém suma do mapa da relevância, independentemente de ser notícia ou não. (Não que, neste caso específico, Anderson vá sentir falta.)

Carlos Brickmann [8], em dois momentos sobre o tópico da manutenção de uma lista negra:

Pior: quando se falava em “lista negra”, sempre se pensava no comando supremo do veículo, ou da empresa. Nunca se pensou que um repórter, por melhor que fosse, por mais alto que estivesse na hierarquia da reportagem, pudesse incluir nomes na lista negra.

Lista negra é o oposto do jornalismo; é a negação da imprensa livre. A opinião é livre, mas levar ao leitor “all the news that’s fit to print” é a obrigação de cada jornalista.

Clarice Gontarski [9] compara jornalismo a uma pelada:

Que bonito, né? O pessoal mostra como está preparado para o debate de opiniões e a visão pluralista da sociedade. A verdade é a seguinte: imprensa no Brasil é que nem bola de jogo de pelada – é minha e só joga quem eu deixar.

Debatendo atitudes jornalísticas

Alguns blogueiros debateram o tom com que Veja reagiu nesse caso, respondendo a Anderson via Reinaldo Azevedo [3], um dos blogueiros empregados pela revista. Daniel Lopes [10] acompanhou de perto a troca de e-mails e decidiu entrar em contato com Anderson por conta própria, o que gerou a tréplica da semana passada, que ele publica tanto em inglês. Ele chama a atitude de Veja de arrogante.

Reinaldo tentou desqualificar os argumentos do jornalista gringo, juntamente com “a canalha” que concorda que a matéria de Veja foi péssimo jornalismo. Com a arrogância costumeira, indiretamente acusou Pedro Doria de “petralha” e dono de um “blog mixuruca”.

No entanto, é no blogue do Reinaldo que os leitores de Veja apareceram para defender a atitude da revista e a matéria sobre Che, em meio a muitos outros comentários que foram removidos pelo administrador do blogue. Um leitor anônimo agradece a Veja pela matéria:

Reinaldo, Brilhante o seu texto. Sou remanescente da época “CHE”, mas como tive que trabalhar desde os 15 anos para ajudar a minha família, não me sobrou tempo para conhecer esse canalha com profundidade. Tal como os Beatles, que considero os pais da libertinagem, drogas etc., esse Porco Fedorento e seus seguidores não conseguiram fazer a minha cabeça, pois quem tem como ideal vencer na vida pelo trabalho não tem tempo para ficar correndo atrás de mitos. Você já viu a figura de seus sicários desde aquela época até os dias atuais?? Sujos, barbudos, mal-cheirosos, preguiçosos, mas contestadores daqueles que conquistaram seu espaço.

A melhor parte do debate está entre os quase mil comentários deixados nas postagens de Pedro Doria, que mostram os dois lados expressando suas opiniões e refletindo sobre o jornalismo e a ilusão de uma imprensa livre. Como diz Brancaleone [11]:

Vira, mexe, remexe e de novo caímos naquela de “Imprensa verdadeira”. Não existe isso. Nenhum jornal, revista, rádio ou TV de qualquer lugar do mundo tem o poder divino de informar a verdade porque não existe verdade na informação. Toda a informação tem a opinião de quem informa. Não existe no universo alguem que informe alguma coisa sem ser parcial, interessado ou falso.

Renato [12] acredita que o fato dessa reportagem ter sido com Che não faz diferença nesse caso:

Seja Che ou a Madre Teresa ou o Papa o problema não é a Veja ter dado sua opinião, mas o mal jornalismo exemplificado no caso. Aos defensores aviso que hoje é o Che mas amanhã pode ser alguém em quem vocês acreditam. Eles vão atacar ou promover simplesmente porque lhes interessa.

Ao ler os e-mails de Anderson, Catatau [13] reflete sobre o que falta no jornalismo brasileiro:

Está tudo aí: o papel do jornalista como divulgador de informações, a cautela quanto a enunciar juízos ou teses (especialmente amplas e taxativas), a tentativa de rigor e imparcialidade, e afins.

Marcia Benetti Machado [14] prossegue:

para mim não importa especificamente a discussão entre Schelp e Anderson, embora eu tenha lido tudo e tenha opinião formada. Schelp errou. a reportagem foi mal apurada, sim, e a tréplica de Anderson esclarece bem as fontes escolhidas pela revista. prova-se mais uma vez que Veja faz “jornalismo de tese” – e “jornalismo”, aqui, é apenas uma licença poética, pois conceitualmente isso não é jornalismo.

Douglas Duarte [15], que conheceu e encontrou Anderson algumas vezes no decorrer das filmagens de seu documentário sobre Che, Personal Che, acredita que o artigo foi mera manipulação:

O artigo de Veja – discutam de quem é a culpa – é uma peça de propaganda e não de reportagem. Digo isso como jornalista e depois de ter lido as quatro biografias mais importantes, entrevistado os dois biógrafos mais respeitados e atravessado um sem-número de outras peças de propaganda – contra e a favor. A da Veja sequer descobre lamas novas para jogar.

O tempo muda linhas editoriais

Em uma entrada entitulada O Che e o nazi-jornalismo, Luiz Raatz [16] diz que a revista passou dos limites de ser apenas uma revista com um olhar direitista:

A revista vem se especializando em atacar o que lhe é estranho. Qualquer coisa nociva e externa ao que o semanário julga normal deve ser extirpada. É um princípio fascista. A limpeza étnica do comportamento. Não pode ser punk. Não pode ser metaleiro. Não pode ser comunista. Não pode ser petista. Não pode ser a favor dos direitos humanos. Veja quer o holocausto da esquerda. Mandar todos que discordam de seu ponto de vista para o campo de concentração e exterminar suas idéias na câmara de gás.

Outros blogueiros compararam a última reportagem de Veja com uma outra matéria sobre Che Guevara [17] publicada há 10 anos na mesma revista. Estudante de jornalismo, Luana Farias [18] coloca as duas matérias lado a lado para analisar o quanto a linha editorial mudou em uma década:

A atual possui caráter predominantemente dissertativo. Não identifica de onde os autores apuraram as informações, o que leva a crer que a matéria foi feita da redação. Parte de tese própria segundo a qual o mito de Che é uma farsa produzida pela ”máquina de propaganda marxista”, diz o texto. E se destina a comprová-la. A de 1997 foi apurada na Bolívia e se ocupa, majoritariamente, de ouvir declarações e descrever fatos que testemunha. (…) Dorrit Harazim concentra-se nas fontes que encontra pelo caminho, pessoas que o admiram, nas cidades bolivianas onde Che é um ser místico, literalmente adorado como santo.

Agora os internautas se perguntam: em qual Veja eles devem acreditar? Naquela que em 1997 publicou uma matéria de capa chamada “A Ressurreição de Che Guevara” ou na edição de 2007 com “Che: A Farsa do Herói” na capa?

 

(texto original de Paula Góes [19])

 

O artigo acima é uma tradução de um artigo original publicado no Global Voices Online [20]. Esta tradução foi feita por um dos voluntários da equipe de tradução do Global Voices em Português [21], com o objetivo de divulgar diferentes vozes, diferentes pontos de vista [22]. Se você quiser ser um voluntário traduzindo textos para o GV em Português, clique aqui [21]. Se quiser participar traduzindo textos para outras línguas, clique aqui [23].