Haiti tem se tornado um assunto freqüentemente comentado na blogosfera brasileira. A conexão especial entre o Brasil e o Haiti começou em 2004, quando as tropas brasileiras começaram a participar do MINUSTAH — Missão de Estabilização no Haiti da Organização das Nações Unidas. Na semana passada, a ONU decidiu estender a sua presença por mais um ano, e os debates nos blogues sobre a contribuição disso para o povo haitiano desenvolveram tons fortemente políticos.
A desculpa oficial constante da Resolução firmada pelo Secretário Geral da entidade, o sul-coreano Ban Ki-moon, consiste na “estabilização do país”, a qual, apesar de ter melhorado, “ainda é frágil e segue ameaçada pelo tráfico internacional de drogas e armas”. Diz também que a situação no Haiti é uma “ameaça à paz internacional e à segurança da região”. Vai ser cara-de-pau assim na casa da mãe dele, lá na Coréia. Ameaça? O Haiti??!!! … Sugiro acessar o blog do pessoal da Conlutas que foi para lá, o “Solidariedade ao Povo Haitiano“. Também já falamos deste assunto aqui. A verdade nua e crua é que os grandes grupos econômicos mundiais descobriram que é muito mais barato manter os escravos em seus países de origem. Reduz significativamente o custo com as frotas de navios negreiros, viagens, rações, correntes e etc.
Capangas ficam mais um ano no Haiti – Sítio Paineira Velha
“As tropas brasileiras, junto com as outras, cumprem um papel de deter o processo de autodeterminação dos haitianos, o que tem ocorrido sistematicamente ao longo da história desse povo lutador”, disse Toninho. “As tropas reprimem a população e a organização dos trabalhadores e, em vários casos, violam os direitos humanos. Além disso, a presença dos militares estrangeiros perpetua um projeto de exploração daquele povo, que visa tornar o Haiti um território de mão-de-obra semi-escrava e que garanta muitos lucros aos capitalistas e grandes potências”, acrescentou Toninho [Antonio Donizete Ferreira, o diretor do Sindicato dos Metalúrgicos].
Debate em São José discute situação do Hati sob ocupação de tropas brasileiras – Solidariedade ao Povo Haitiano – COBERTURA Haitiano – COBERTURA
Além da exigência costumeira do fim da “ocupação” haitiana, os blogues brasileiros estão cavando informações que mostram [en] que os haitianos estão genuinamente agradecidos às forças de paz desde que René Preval assumiu. Coronel Cunha Matos, chefe do setor de Comunicação Social do Exército brasileiro que serviu no MINUSTAH por um ano foi citado em muitos blogues, e não apenas por causa de sua frase célebre: ‘O Rio é pior do que o Haiti‘.
Segundo Cunha Mattos, a presença brasileira em Porto Príncipe, na capital haitiana, conta com quase 80% da aprovação da população local. Ele explica que essa é a quarta missão no Haiti e a “única que está dando certo”. O modelo de manutenção da paz usado pelo Brasil que “não está em manual militar algum, é o jeitinho brasileiro de ser”. O coronel explica que o brasileiro tem uma facilidade para comunicar que cativa a população. Segundo ele, existe uma identidade cultural do modo de ser do brasileiro com os haitianos. O Exército mobilizou líderes comunitários para envolver os moradores, para ele, o apoio popular foi imprescindível na manutenção da ordem. “Dávamos consciência comunitária para fazer a vida voltar ao normal, criávamos vínculos com a população e estabelecíamos parcerias com organizações humanitárias, é o caso dos médicos sem fronteiras”.
Haiti e Rio de Janeiro, na visão do coronel – Ciranda Internacional de Informação Independente
“O Rio é pior que o Haiti” é o que afirma o Coronel de artilharia Cunha Mattos, chefe do setor de Informação Pública do Centro de Comunicação Social do Exército, comparando a gravidade dos conflitos armados existentes nos dois locais. Tráfico de drogas, armamento e topografia, segundo Mattos, são os três fatores básicos de diferenciação… A estrutura comercial do tráfico do Rio é mantida pelo forte armamento em poder dos traficantes. O Coronel destaca o fato de eles possuírem armas que nem as forças armadas possuem. No Haiti, as armas apreendidas eram antigas e de menor poder de fogo. Além da disparidade de armamento, a posição física ocupada pelos traficantes cariocas dificulta muito a intervenção policial. Por estarem em cima do morro, eles possuem o que o coronel chama de “comandamento”. É muito mais difícil para a polícia subir alvejada por tiros. “No Haiti, entre a tropa de paz e os inimigos, era zero a zero. Era tudo plano”.
Coronel que participou da missão de paz do Haiti considera que conflito armado do Rio é pior – Consciência.net
Tentando entender as circunstâncias políticas e sociais atuais no Haiti, a blogosfera brasileira tem colhido alguns elementos históricos pesquisados em artigos de alguns velhos conhecidos intelectuais. Há também uma reportagem multimídia interessante na Agência Brasil que pode ser vista em um clique na imagem ao lado.
1804 – O Vértice da História. Depois de 14 anos de Guerra, o povo do Haiti derrota o maior, o mais poderoso exército da terra. Impõe a Napoleão Bonaparte a terceira derrota militar. E a primeira derrota político-militar. (Em nenhuma biografia de Napoleão consta a derrota para o povo do Haiti; nenhum livro didático no Brasil, consta a derrota dos exércitos napoleônicos pelo negro Haiti). Vitória da Aliança, a vitória do intercâmbio. Em toda guerra há o envolvimento de tantas nações de um quanto do outro lado. Toda vitória, numa guerra, é o produto da união de um grupo de nações. Assim a vitória do Haiti está recheada de alianças: O interesse pelo açúcar e pelas terras agricultáveis do Haiti ora trazem a Espanha; ora, a Inglaterra; ora atraem os Estados Unidos, cujo fornecimento de armas, foi de grande importância.
Haiti, o vértice da história – 1804 / 1808 – Overmundo
Para eliminar qualquer vestígio da participação estadunidense na ditadura sanguinária do general Cedrás, os marines retornaram ao seu país levando 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide voltou acorrentado. Deram-lhe permissão para governar, mas lhe negaram o poder. Seu sucessor, René Préval, obteve quase 90% dos votos nas últimas eleições presidenciais, mas qualquer chefe de quarta categoria do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial tem mais poder no país do que o próprio presidente. O veto pode mais que o voto. Veto às reformas: toda vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede empréstimos internacionais para dar pão aos famintos, palavras aos analfabetos ou terra aos lavradores, fica sem resposta. Ou, na melhor das hipóteses, obtém uma resposta em forma de ordem: “Recita a lição”. No momento em que o governo haitiano se nega a entender que precisa se desfazer dos poucos serviços públicos que ainda restam – últimos míseros refúgios para um dos povos mais abandonados do mundo –, os professores o reprovam no exame.
Eduardo Galeano em O crime imperdoável da dignidade – Blog do Bourdokan
Qualquer que seja o diagnóstico que se faça da história recente do Haiti, o certo é que, depois da catástrofe que significou para o Haiti a ditadura do clã Duvalier, o desastre mais recente, que ajuda a entender a grave situação em que se encontra o país, foi o fracasso do governo de Aristide. Ele tinha as melhores condições para dar inicio à reconstrução democrática do país, pela liderança popular que tinha como padre da teologia da libertação, da oposição democrática, contando também com apoio internacional… Aristide foi perdendo o controle do país, mobilizações populares contra ele foram crescendo. Ao longo do segundo semestre de 2003, ele continuava a dispor de grupos populares armados por ele. A falta de recursos externos foi levando o país a um processo de desintegração acelerada, sem serviços públicos, sem forças de segurança, com grupos de-ex-militares armados cruzando a fronteira para atacar o governo. Foi nesse contexto de véspera de guerra civil, que os governos dos EUA e da França se reivindicaram o direito de intevir, derrubando o governo de Aristide. Alegando que os governos da região preferiam a presença de tropas latino-americanas, o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Chile, substituíram esse contingente com suas tropas.Aí começa o período contemporâneo do Haiti, com um presidente eleito, René Preval, grandes dificuldades econômicas e sociais, instabilidade institucional, presença de tropas estrangeiras.
Emir Sader em Os Problemas e os Desastres Históricos do Haiti – Página UM
A última citação é parte de um artigo escrito por um pensador brasileiro bem conhecido, e que tem causado fortes reações. Sader é criticado por oferecer uma “justificativa para a ocupação por parte das tropas”.
A juzgar por los hechos, la estrategia militar y política de los países invasores tras el golpe, dentro y fuera de Haití, parece haber sido la siguiente. A Aristide se le considera ciertamente el enemigo más temible, el único político en Haití que debido al apoyo popular es capaz de representar una amenaza para el control del país . Dentro de Haití, la táctica empleada para combatirlo parece haber sido simplemente la represión policial y militar pura y dura contra sus partidarios. Fuera del país, todo indica que se ha optado por un esquema propagandístico que busca justificar la invasión como un mal menor que hubo que adoptar ante una situación de caos e ingobernabilidad cuyo mayor responsable hubiera sido justamente Aristide. Ese es el mensaje que se quiere vehicular… Cabe indagarse, finalmente, si la misma táctica habría funcionado si se hubiese tratado de un golpe a otro gobierno latinoamericano. Es difícil imaginar a alguien como Sader refiriéndose al golpe de Estado contra Chávez, por ejemplo, en los términos que lo hace aquí, sin que hubiese perdido toda su credibilidad como intelectual de izquierda. Pero Haití, por lo visto, es diferente, por motivos sobre los que solo cabe especular.
Sader y la responsabilidad de Aristide – LaHaine.orgA julgar pelos fatos, parece que a estratégia militar e política dos países invasores após o golpe, dentro e fora do Haiti parece ter sido a seguinte: Aristide é considerado certamente o mais terrível inimigo, o único político no Haiti que devido ao apoio popular é capaz de representar uma ameaça para o controle do país. Dentro do Haiti, a tática empregada para combatê-lo parece ter sido simplesmente a repressão policial e militar pura e dura contra os seus partidários. Fora do país, tudo indica que se optou por um esquema propagandístico que busca justificar a invasão como um mal menor que teve que ser adotado diante de uma situação de caos e ingovernabilidade causada por Aristide. Essa é a imagem que querem vincular… Cabe aí a indagação, finalmente, se a mesma tática teria funcionado se o golpe tivesse ocorrido em um outro país latino-americano. É difícil imaginar alguém como Sader referindo-se a esse golpe de Estado contra Chávez, por exemplo, nos termos em que ele faz aqui, sem que houvesse perdido toda a sua credibilidade como intelectual de esquerda. Mas Haití, pelo visto, é diferente, por motivos sobre os quais eu posso apenas especular.
Sader y la responsabilidad de Aristide – LaHaine.org
Além das previsíveis polaridades direita-esquerda e esquerda-esquerda, alguns blogueiros vão em busca de alternativas e um bom exemplo disso é a alta ocorrência do termo (‘Haiti é aqui’) em postagens recentes. A inspiração pode ter sido o refrão da canção (‘O Haiti é aqui, o Haiti não é aqui’) de Caetano Veloso e do Ministro da Cultura Gilberto Gil, mas também pode indicar um padrão de identificação cultural inerente.
Os brasileiros também se confrontam com pobreza e sofrimento em alguns setores da economia, mas os últimos anos têm mostrado um crescimento contínuo, um senso especial de dignidade originado de definições não materiais de riqueza em termos de cultura. Será que os brasileiros estão importando esse senso especial de valorização dos tesouros culturais dos irmãos e irmãs caribenhos?
“Haiti is Here, Haiti is Not Here“
Caetano Veloso & Gilberto Gil
… Mas presos são quase todos pretos
Ou quase pretos
Ou quase brancos quase pretos de tão pobres
E pobres são como podres
E todos sabem como se tratam os pretos
E quando você for dar uma volta no Caribe
E quando for trepar sem camisinha
E apresentar sua participação inteligente no bloqueio a Cuba
Pense no Haiti, Reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
O Haiti não é aqui.
No ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Sentiram um profundo mal-estar, ficaram muito chocados ao ver tanta miséria. O embaixador da Alemanha em Porto Príncipe explicou a eles qual é o problema: “Tem gente demais neste país”, disse. “A mulher haitiana sempre está a fim, e o homem haitiano sempre pode.” E riu. Os deputados ficaram calados. Naquela mesma noite, um deles, Winfried Wolf, deu uma verificada nos números. E constatou que o Haiti, juntamente com El Salvador, é o país mais populoso das Américas…, tão populoso quanto a Alemanha: têm quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado. Durante os dias em que esteve no Haiti, o deputado Wolf não se impressionou apenas com a miséria. Ficou também maravilhado com a beleza das pinturas populares. E chegou à conclusão de que o Haiti é superpovoado… de artistas.
Eduardo Galeano em O crime imperdoável da dignidade – Blog do Bourdokan
(texto original de Jose Murilo Junior)
O artigo acima é uma tradução de um artigo original publicado no Global Voices Online. Esta tradução foi feita por um dos voluntários da equipe de tradução do Global Voices em Português, com o objetivo de divulgar diferentes vozes, diferentes pontos de vista. Se você quiser ser um voluntário traduzindo textos para o GV em Português, clique aqui. Se quiser participar traduzindo textos para outras línguas, clique aqui.